domingo, 31 de maio de 2009

Poema.

Basta pensar em sentir


Basta pensar em sentir
Para sentir em pensar.
Meu coração faz sorrir
Meu coração a chorar.
Depois de parar de andar,
Depois de ficar e ir,
Hei de ser quem vai chegar
Para ser quem quer partir.

Viver é não conseguir.
(Fernando Pessoa)

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Poema

Clarice Lispector

Não te amo mais.
Estarei mentindo dizendo que
Ainda te quero como sempre quis.
Tenho certeza que
Nada foi em vão.
Sinto dentro de mim que
Você não significa nada.
Não poderia dizer jamais que
Alimento um grande amor.
Sinto cada vez mais que
Já te esqueci!
E jamais usarei a frase
EU TE AMO!
Sinto, mas tenho que dizer a verdade
É tarde demais...
------------------------------------------
Sintam a genialidade da poetisa leiam o poema de cima a baixo e de baixo a cima.

Poema.

De tudo ficaram três coisas

De tudo ficaram três coisas:
A certeza de que estamos começando,
A certeza de que é preciso continuar e
A certeza de que podemos ser interrompidos antes de terminar
Fazer da interrupção um caminho novo,
Fazer da queda um passo de dança,
Do medo uma escola,
Do sonho uma ponte,
Da procura um encontro,
E assim terá valido a pena existir!

Fernando Sabino, do livro "Encontro Marcado"
(*12-10-1923 +11-10-2004)

Poema.

Álvaro de Campos

Barrow-on-Furness


I

Sou vil, sou reles, como toda a gente
Não tenho ideais, mas não os tem ninguém.
Quem diz que os tem é como eu, mas mente.
Quem diz que busca é porque não os tem.

É com a imaginação que eu amo o bem.
Meu baixo ser porém não mo consente.
Passo, fantasma do meu ser presente,
Ébrio, por intervalos, de um Além.

Como todos não creio no que creio.
Talvez possa morrer por esse ideal.
Mas, enquanto não morro, falo e leio.

Justificar-me? Sou quem todos são...
Modificar-me? Para meu igual?...
— Acaba lá com isso, ó coração!

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Marinho 513-Manuela 233

Em apenas 3 minutos e 26 segundos(o tempo que durou a discussão entre o bastonário dos advogados e Manuela Moura Guedes),Marinho Pinto conseguiu dizer 513 palavras.Já a jornalista da TVI,durante o mesmo tempo,só conseguiu proferir 233,tendo sido a sua intervenção mais frequente a expressão «oh senhor doutor».O bastonário convidado do Jornal Nacional da TVI da passada sexta-feira,também se repetiu. Só a frase«o jornalismo que você faz é uma vergonha»,dita com inúmeras variantes, foi proferida pelo bastonário cerca de 10 vezes.Seguiu-se a afirmação:«O que você faz aqui é julgar pessoas».Contudo,depois do fogo cruzado,o bastonário ainda agradeceu à jornalista:«Tive muito gosto em estar aqui consigo.»

"Da revista SÁBADO de 28/5 a 6/6"

terça-feira, 26 de maio de 2009

"Escrever é fácil. Você começa com uma maiúscula e termina com um ponto final.
No meio, coloca idéias".
Pablo Neruda

"A timidez é uma condição alheia ao coração, uma
categoria, uma dimensão que desemboca na solidão"
Pablo Neruda

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Poesia.

Dificuldade de governar

1

Todos os dias os ministros dizem ao povo
Como é difícil governar. Sem os ministros
O trigo cresceria para baixo em vez de crescer para cima.
Nem um pedaço de carvão sairia das minas
Se o chanceler não fosse tão inteligente. Sem o ministro da Propaganda
Mais nenhuma mulher poderia ficar grávida. Sem o ministro da Guerra
Nunca mais haveria guerra. E atrever-se ia a nascer o sol
Sem a autorização do Führer?
Não é nada provável e se o fosse
Ele nasceria por certo fora do lugar.

2

E também difícil, ao que nos é dito,
Dirigir uma fábrica. Sem o patrão
As paredes cairiam e as máquinas encher-se-iam de ferrugem.
Se algures fizessem um arado
Ele nunca chegaria ao campo sem
As palavras avisadas do industrial aos camponeses: quem,
De outro modo, poderia falar-lhes na existência de arados? E que
Seria da propriedade rural sem o proprietário rural?
Não há dúvida nenhuma que se semearia centeio onde já havia batatas.

3

Se governar fosse fácil
Não havia necessidade de espíritos tão esclarecidos como o do Führer.
Se o operário soubesse usar a sua máquina
E se o camponês soubesse distinguir um campo de uma forma para tortas
Não haveria necessidade de patrões nem de proprietários.
E só porque toda a gente é tão estúpida
Que há necessidade de alguns tão inteligentes.

4

Ou será que
Governar só é assim tão difícil porque a exploração e a mentira
São coisas que custam a aprender?

Bertolt Brescht (10/02/1898-14/08/1956)

Mulher à Janela de Salvador Dali.

Poema.

Deve chamar-se tristeza

Deve chamar-se tristeza
Isto que não sei que seja
Que me inquieta sem surpresa
Saudade que não deseja.
Sim, tristeza - mas aquela
Que nasce de conhecer
Que ao longe está uma estrela
E ao perto está não a Ter.

Seja o que for, é o que tenho.
Tudo mais é tudo só.
E eu deixo ir o pó que apanho
De entre as mãos ricas de pó.

- Fernando Pessoa

domingo, 24 de maio de 2009

Poema.

RUDYARD KIPLING - Se







Se podes conservar o teu bom senso e a calma
No mundo a delirar para quem o louco és tu...
Se podes crer em ti com toda a força de alma
Quando ninguém te crê...Se vais faminto e nu,

Trilhando sem revolta um rumo solitário...
Se à torva intolerância, à negra incompreensão,
Tu podes responder subindo o teu calvário
Com lágrimas de amor e bênçãos de perdão...

Se podes dizer bem de quem te calunia...
Se dás ternura em troca aos que te dão rancor
(Mas sem a afectação de um santo que oficia
Nem pretensões de sábio a dar lições de amor)...

Se podes esperar sem fatigar a esperança...
Sonhar, mas conservar-te acima do teu sonho...
Fazer do pensamento um arco de aliança,
Entre o clarão do inferno e a luz do céu risonho...

Se podes encarar com indiferença igual
O triunfo e a derrota, eternos impostores...
Se podes ver o bem oculto em todo o mal
E resignar sorrindo o amor dos teus amores...

Se podes resistir à raiva e à vergonha
De ver envenenar as frases que disseste
E que um velhaco emprega eivadas de peçonha
Com falsas intenções que tu jamais lhes deste...

Se podes ver por terra as obras que fizeste,
Vaiadas por malsins, desorientando o povo,
E sem dizeres palavra, e sem um termo agreste,
Voltares ao princípio a construir de novo...

Se puderes obrigar o coração e os músculos
A renovar um esforço há muito vacilante,
Quando no teu corpo, já afogado em crepúsculos,
Só exista a vontade a comandar avante...

Se vivendo entre o povo és virtuoso e nobre...
Se vivendo entre os reis, conservas a humildade...
Se inimigo ou amigo, o poderoso e o pobre
São iguais para ti à luz da eternidade...

Se quem conta contigo encontra mais que a conta...
Se podes empregar os sessenta segundos
Do minuto que passa em obra de tal monta
Que o minute se espraie em séculos fecundos...

Então, á ser sublime, o mundo inteiro é teu!
Já dominaste os reis, os tempos, os espaços!...
Mas, ainda para além, um novo sol rompeu,
Abrindo o infinito ao rumo dos teus passos.

Pairando numa esfera acima deste plano,
Sem receares jamais que os erros te retomem,
Quando já nada houver em ti que seja humano,
Alegra-te, meu filho, então serás um homem!...


(RUDYARD KIPLING (1865-1936)

- tradução de Féliz Bermudes)

Poema.

Princípios

Podíamos saber um pouco mais
da morte. Mas não seria isso que nos faria
ter vontade de morrer mais
depressa.

Podíamos saber um pouco mais
da vida. Talvez não precisássemos de viver
tanto, quando só o que é preciso é saber
que temos de viver.

Podíamos saber um pouco mais
do amor. Mas não seria isso que nos faria deixar
de amar ao saber exactamente o que é o amor, ou
amar mais ainda ao descobrir que, mesmo assim, nada
sabemos do amor.

Nuno Júdice

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Beijo roubado -Cesaria Evora-

Poema.

NOUTROS LUGARES

Não é que ser possível ser feliz acabe,
quando se aprende a sê-lo com bem pouco.
Ou que não mais saibamos repetir o gesto
que mais prazer nos dá, ou que daria
a outrem um prazer irresistível. Não:
o tempo nos afina e nos apura:
faríamos o gesto com infinda ciência.
Não é que passem as pessoas, quando
o nosso pouco é feito da passagem delas.
Nem é tanto que ao jovem seja dado
o que a mais velhos se recusa. Não.

É que os lugares acabam. Ou ainda antes
de serem destruídos, as pessoas somem
e não mais voltam onde parecia
que elas ou outras voltariam sempre
por toda a eternidade. Mas não voltam,
desviadas por razões ou por razão nenhuma.

É que as maneiras, modos, circunstâncias
mudam. Desertas ficam praias que brilhavam
não de água ou sol mas solta juventude.
As ruas rasgam casas onde leitos
já frios e lavados não rangiam mais.
E portas encostadas só se abrem sobre
a treva que nenhuma sombra aquece.

O modo como tínhamos ou víamos,
em que com tempo o gesto sempre o mesmo
faríamos com ciência refinada e sábia
(o mesmo gesto que seria útil,
se o modo e a circunstância permitissem),
tornou-se sem sentido e sem lugar.

Aonde e como? Aonde e como? Quando?
Em que praias, que ruas, casas e quais leitos,
a que horas do dia ou da noite não sei.
Apenas sei que as circunstâncias mudam
e que os lugares acabam. E que a gente
não volta ou não repete, e sem razão, o que
só por acaso era a razão dos outros.

Se do que vi ou tive uma saudade sinto,
feita de raiva e do vazio gélido,
não é saudade, não. Mas muito apenas
o horror de não saber como se sabe agora
o mesmo que aprendi. E a solidão
de tudo ser igual doutra maneira.
E o medo de que a vida seja isto:
um hábito quebrado que se não reata,
senão noutros lugares que não conheço.


JORGE DE SENA
Poema
Baptismo

Os mais difíceis poemas onde falo de amor
são aqueles em que o amor contempla.

O amor esquece ao contemplar,
esquece que não existe e encantado olha
um raio anónimo sob o vento mais leve.

Contempla, amor, contempla.
E vai criando o nome que darás ao raio.

Jorge de Sena, in 'Coroa da Terra'

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Poema

LETREIRO

Porque não sei mentir,
Não vos engano:
Nasci subversivo.
A começar por mim - meu principal motivo
De insatisfação -,
Diante de qualquer adoração,
Ajuízo.
Não me sei conformar.
E saio, antes de entrar,
De cada paraíso.

Miguel Torga

domingo, 17 de maio de 2009

Bertrand Russel / Gustav Mahler.

Amanhã,18 de Maio,é um dia ligado a duas pessoas que,por várias razões, me influenciaram e marcaram em dois períodos da minha vida. Bertrand Russel nasceu a 18/5/1872 e faleceu a 2/2/1970. Na minha adolescência li algumas das obras mais significativas de Russel. Irreverente, Russel (Nobel da literatura em 1950 "Em reconhecimento dos seus variados e significativos escritos,nos quais lutou por ideais humanísticos e pela liberdade do pensamento")foi sempre um crítico da Guerra do Vietname e das armas nucleares mas foi a sua filosofia que mais marcou, muitos, da minha geração...Gustav Malher (o meu compositor preferido) nasceu a 7/6/1860 e morreu a 18/5/1911. Mahler só o descobri (mas já o conhecia) em 1971 ano em que Luchino Visconte passou para o cinema o livro,de 1912, "A morte em Veneza" de Thomas Mann com a música (inesquecível) da 5ª sinfonia de Mahler.Hoje reli ,pedaços, de "Porque não sou Cristão" e de "Crimes de Guerra no Vietname" e vi e ouvi,partes, da 5ª de Mahler numa versão ,recentemente editada, num DVD com Claudio Abbado com a "Lucerne Festival Orchestra". Outros tempos...outra gente...

sábado, 16 de maio de 2009

Poema

A beleza

A beleza

Sempre foi

Um motivo secundário

No corpo que nós amamos;

A beleza não existe,

E quando existe não dura.

A beleza

Não é mais do que o desejo

Fremente

Que nos sacode...

- O resto, é literatura.


(António Botto)
(1897-1959)

"Eu não exito sem você" com Oswaldo Montenegro.

Camila Morgado com "Soneto da Fidelidade" de Vinícius de Moraes.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

UM POEMA

Não tenhas medo, ouve:
É um poema
Um misto de oração e de feitiço...
Sem qualquer compromisso,
Ouve-o atentamente,
De coração lavado.
Poderás decorá-lo
E rezá-lo
Ao deitar
Ao levantar,
Ou nas restantes horas de tristeza.
Na segura certeza
De que mal não te faz.
E pode acontecer que te dê paz...

Miguel Torga, Diário XIII

Poema

Preservação

Chama-se liberdade o bem que sentes,
Águia que pairas sobre as serranias;
Chamam-se tiranias
Os acenos que o mundo
Cá de baixo te faz;
Não desças do teu céu de solidão,
Pomba da verdadeira paz,
Imagem de nenhuma servidão!


(Miguel Torga)
1907-1995

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Poema

Dies Irae

Apetece cantar, mas ninguém canta.
Apetece chorar, mas ninguém chora.
Um fantasma levanta
A mão do medo sobre a nossa hora.

Apetece gritar, mas ninguém grita.
Apetece fugir, mas ninguém foge.
Um fantasma limita
Todo o futuro a este dia de hoje.

Apetece morrer, mas ninguém morre.
Apetece matar, mas ninguém mata.
Um fantasma percorre
Os motins onde a alma se arrebata.

Oh! maldição do tempo em que vivemos,
Sepultura de grades cinzeladas,
Que deixam ver a vida que não temos
E as angústias paradas!

(Miguel Torga)
(1907-1995)

Poema.

BAILADO
Quebrada pela cintura
Abre em dois frutos o peito.
E o seu calcanhar procura
A ponta do pé direito.

O vento dá-lhe na cara,
Escondida pelo lenço.
E o luar,que a decepara,
Deixa-lhe o busto suspenso...

Os olhos,como hei-de vê-los,
Se os desejos,menos vãos,
Morrem só porque os cabelos
Nos deixam sombras nas mãos?

Indizível,mas perfeito
Indício de formosura!
Abre em dois frutos o peito,
Quebrada pela cintura...

(Pedro Homem de Mello)
(1904-1984)

Pensamento.

"Do rio que tudo arrasta diz-se que é violento.Mas ninguém chama violentas às margens que o comprimem"

(Bertolt Brecht 1898-1956)

terça-feira, 12 de maio de 2009

No aniversário de Manuel Alegre 12 de Maio.

Manuel Alegre nasceu a 12/05/1936 festeja hoje 73 anos.

As Mãos

Com mãos se faz a paz se faz a guerra.
Com mãos tudo se faz e se desfaz.
Com mãos se faz o poema – e são de terra.
Com mãos se faz a guerra – e são a paz.



Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
Não são de pedras estas casas mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.



E cravam-se no Tempo como farpas
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.



De mãos é cada flor cada cidade.
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.


Manuel Alegre.

Para Pensar.

EDUARDO GALEANO" - UTOPIA
"A utopia está lá no horizonte.
Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos.
Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos.
Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei.
Para que serve a utopia?
Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar".

domingo, 10 de maio de 2009

Poema

A História da Moral


Você tem-me cavalgado,
seu safado!
Você tem-me cavalgado,
mas nem por isso me pôs
a pensar como você.

Que uma coisa pensa o cavalo;
outra quem está a montá-lo.

Alexandre O'Neill (1924-1986)
Poesias Completas.

Pontes no Rio Douro.


Foto Fel de Cão.

Rio Douro


Foto Fel de Cão.

Recanto com o rio Douro.





Foto Fel de Cão.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Poema

Para ser grande, sê inteiro

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive

Ricardo Reis

Poema.

Isto

Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está de pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

Fernando Pessoa

terça-feira, 5 de maio de 2009

AS MÃES

Quando voltar ao Alentejo as cigarras já terão morrido. Passaram o verão todo a transformar a luz em canto – não sei de destino mais glorioso. Quem lá encontraremos, pela certa, são aquelas mulheres envolvidas na sombra dos seus lutos, como se a terra lhes tivesse morrido e para todo o sempre se quedassem órfãs. Não as veremos apenas em Barrancos ou em Castro Laboreiro, elas estão em toda a parte onde nasce o sol: em Cória ou Catânia, em Mistras ou Santa Clara del Cobre, em Varchats ou Beni Mellal, porque elas são as mães. O olhar esperto ou sonolento, o corpo feito um espeto ou mal podendo com as carnes, elas são as Mães. A tua; a minha, se não tivesse morrido tão cedo, sem tempo para que o rosto viesse a ser lavrado pelo vento. Provavelmente estão aí desde a primeira estrela. E o que elas duram! Feitas de urze ressequida, parecem imortais. Se o não forem, são pelo menos incorruptíveis como se participassem da natureza do fogo. Com mãos friáveis teceram a rede dos nossos sonhos, alimentaram-nos com a luz coada pela obscuridade dos seus lenços. Às vezes, encostam-se à cal dos muros a ver passar os dias, roendo uma côdea ou fazendo uns carapins para o último dos netos, as entranhas abertas nas palavras que vão trocando entre si; outras vezes caminham por quelhas e quelhas de pedra solta, batem a um postigo, pedem lume, umas pedrinhas de sal, agradecem pelas almas de quem lá têm, voltam ao calor animal da casa, aquecem um migalho de café, regam as sardinheiras, depois de varrerem o terreiro. Elas são as Mães, essas mulheres que Goethe pensa estarem fora do tempo e do espaço, anteriores ao Céu e ao Inferno, assim velhas, assim terrosas, os olhos perdidos e vazios, ou vivos como brasas assopradas. Solitárias ou inumeráveis, aí as tens na tua frente, graves, caladas, quase solenes na sua imobilidade, esquecidas de que foram o primeiro orvalho do homem, a primeira luz. Mas também as podes ver seguindo por lentas veredas de sombra, as pernas pouco ajudando a vontade, atrás de uma ou duas cabras, com restos de garbo na cabeça levantada, apesar das tetas mirradas. Como encontrarão descanso nos caminhos do mundo? Não há ninguém que as não tenha visto com umas contas nas mãos engelhadas rezando pelos seus defuntos, rogando pragas a uma vizinha que plantou à roda do curral mais três pés de couve do que ela, regressando da fonte amaldiçoando os anos que já não podem com o cântaro, ou debaixo de uma oliveira roubando alguma azeitona para retalhar. E cheiram a migas de alho, a ranço, a aguardente, mas também a poejos colhidos nas represas, a manjerico quando é pelo S. João. E aos domingos lavam a cara e mudam de roupa, e vão buscar à arca um lenço de seda preta, que também põem nos enterros. E vede como, ao abrir, a arca cheira a alfazema! Algumas ainda cuidam das sécias que levam aos cemitérios ou vendem pelas termas, juntamente com um punhado de maçãs amadurecidas no aroma dos fenos. E conheço uma que passa as horas vigiando as traquinices de um garoto que tem na testa uma estrelinha de cabrito montês – e que só ela vê, só ela vê.

Elas são as Mães, ignorantes da morte mas certas da sua ressurreição.

...........................Eugénio de Andrade, in Vertentes do olhar, 1987

Poema

CANÇÃO



Sol nulo dos dias vãos,

Cheios de lida e de calma,

Aquece ao menos as mãos

A quem não entras na alma!



Que ao menos a mão, roçando

A mão que por ela passe,

Com externo calor brando

O frio da alma disfarce!



Senhor, já que a dor é nossa

E a fraqueza que ela tem,

Dá-nos ao menos a força

De a não mostrar a ninguém!



( Ficções do Interlúdio )
(Fernando Pessoa 1888-1935).

sábado, 2 de maio de 2009

Figueira da Foz " De costas para o mar"

Poema à Mãe de Eugénio de Andrade.

No mais fundo de ti
Eu sei que te traí, mãe.

Tudo porque já não sou
O menino adormecido
No fundo dos teus olhos.

Tudo porque ignoras
Que há leitos onde o frio não se demora
E noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
São duras, mãe,
E o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
Que apertava junto ao coração
No retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
Talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
Que todo o meu corpo cresceu,
E até o meu coração
Ficou enorme, mãe!

Olha - queres ouvir-me? -
Às vezes ainda sou o menino
Que adormeceu nos teus olhos;

Ainda aperto contra o coração
Rosas tão brancas
Como as que tens na moldura;

Ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
No meio do laranjal...

Mas - tu sabes - a noite é enorme,
E todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
Dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

"Lo que puede el dinero " de Acipreste de Hita.

Fim de tarde (Figueira )

Poema

Quem és tu

Quem és tu que assim vens pela noite adiante,
Pisando o luar branco dos caminhos,
Sob o rumor das folhas inspiradas?

A perfeição nasce do eco dos teus passos,
E a tua presença acorda a plenitude
A que as coisas tinham sido destinadas.

A história da noite é o gesto dos teus braços,
O ardor do vento a tua juventude,
E o teu andar é a beleza das estradas.



Sophia de Mello Breyner Andresen
Obra Poética I
Caminho

Poema

Madrigal


Tu já tinhas um nome,e eu não sei
se eras fonte ou brisa ou mar ou flor.
Nos meus versos chamar-te-ei amor.


( Eugénio de Andrade 1923-2005 ).

Muitos Homens na Prisão Ary dos Santos em 1977.

Lendo e relendo neste 1º de Maio de 2009

... A própria e pequena satisfação de escrever nos foi recusada. Por um lado,com efeito, a cidade já não estava ligada ao resto do país pelos meios de comunicação habituais e, por outro lado, um novo decreto proibiu a troca de qualquer correspondência,a fim de evitar que as cartas pudessem tornar-se veículos de infecção...Seres ligados pela inteligência,pelo coração ou pela carne ficaram reduzidos a procurar os sinais desta comunhão antiga nas maiúsculas de um telegrama de dez palavras. E como,na realidade,as fórmulas que se podem utilizar num telegrama se esgotam depressa, longas vidas em comum ou paixões dolorosas resumiram-se rapidamente a uma troca periódica de fórmulas feitas,como «Estou bem.Penso em ti.Saudades»...



( de "A PESTE" de Albert Camus 1913-1960).

Canto de Esperança / Luís Cília (1973).

Poema

QUASE NADA



O amor
é uma ave a tremer
nas mãos de uma criança.
serve-se de palavras
por ignorar
que as manhãs mais limpas
não têm voz.


(Eugénio de Andrade 1923-2005).

Gripe

Gripe A(H1N1) Mexicana/Suina