domingo, 28 de fevereiro de 2010

José Gomes Ferreira


Menino que vais na rua,

Menino que vais na rua,
não cantes nem chores: berra!
Cospe no céu e na lua
e aprende a pisar a terra.
Aprende a pisar o Mundo.
Deixa a lua aos violinos
dos olhos dos vagabundos
e dos poetas caninos.
Aprende a pisar a vida.
Deixa a lua às costureiras
- pobre moeda caída
de quem não tem algibeiras.
Aprende a pisar no chão
o silêncio do luar
sem sentir no coração
outras pedras a gritar.
Pisa a lua sem remorsos,
estatelada no solo...
Não hesites! Quebra os ossos
dessa criança de colo.
Pisa-a, frio, com coragem,
sem olhos de serenata:
que isso que vês na paisagem
não é ouro nem é prata.
Menino que vais na rua,
não chores, nem cantes: berra!
ou, então, salta p'rá lua
e mija de lá na terra.



José Gomes Ferreira

José Gomes Ferreira

Astor Piazzolla - Libertango -

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Herberto Helder



Prefácio

Falemos de casas, do sagaz exercício de um poder
tão firme e silencioso como só houve
no tempo mais antigo.
Estes são os arquitectos, aqueles que vão morrer,
sorrindo com ironia e doçura no fundo
de um alto segredo que os restitui à lama.
De doces mãos irreprimíveis.
– Sobre os meses, sonhando nas últimas chuvas,
as casas encontram seu inocente jeito de durar contra
a boca subtil rodeada em cima pela treva das palavras.

Digamos que descobrimos amoras, a corrente oculta
do gosto, o entusiasmo do mundo.
Descobrimos corpos de gente que se protege e sorve, e o silêncio
admirável das fontes –
pensamentos nas pedras de alguma coisa celeste
como fogo exemplar.
Digamos que dormimos nas casas, e vemos as musas
um pouco inclinadas para nós como estreitas e erguidas flores
tenebrosas, e temos memória
e absorvente melancolia
e atenção às portas sobre a extinção dos dias altos.

Estas são as casas. E se vamos morrer nós mesmos,
espantamo-nos um pouco, e muito, com tais arquitectos
que não viram as torrentes infindáveis
das rosas, ou as águas permanentes,
ou um sinal de eternidade espalhado nos corações
rápidos
– Que fizeram estes arquitectos destas casas, eles que vagabundearam
pelos muitos sentidos dos meses,
dizendo: aqui fica uma casa, aqui outra, aqui outra,
para que se faça uma ordem, uma duração,
uma beleza contra a força divina?

Alguém trouxera cavalos, descendo os caminhos da montanha.
Alguém viera do mar.
Alguém chegara ao estrangeiro, coberto de pó.
Alguém lera livros, poemas, profecias, mandamentos,
inspirações.
– Estas casas serão destruídas.
Como um girassol, elaborado para a bebedeira, insistente
no seu casamento solar, assim
se esgotará cada casa, esbulhada de um fogo,
vergando a demorada cabeça para os rios misteriosos
da terra
onde os próprios arquitectos se desfazem com suas mãos
múltiplas, as caras ardendo nas velozes
iluminações.

Falemos de casas. É verão, outono,
nome profuso entre as paisagens inclinadas.
Traziam o sal, os construtores
da alma, comportavam em si
restituidores deslumbramentos em presença da suspensão
de animais e estrelas,
imaginavam bem a pureza com homens e mulheres
ao lado uns dos outros, sorrindo enigmaticamente,
tocando uns nos outros –
comovidos, difíceis, dadivosos,
ardendo devagar.

Só um instante em cada primavera se encontravam
com o junquilho original,
arrefeciam o resto do ano, eram breves os mestres
da inspiração.
– E as casas levantavam-se
sobre as águas ao comprido do céu.
Mas casas, arquitectos, encantadas trocas de carne
doce e obsessiva – tudo isso
está longe da canção que era preciso escrever.

Falemos de casas, da morte. Casas são rosas
para cheirar muito cedo, ou à noite, quando a esperança
nos abandona para sempre.
Casas são rios diuturnos, nocturnos rios
celestes que fulguram lentamente
até uma baía fria – que talvez não exista,
como uma secreta eternidade.

Falemos de casas como quem fala da sua alma,
entre um incêndio,
junto ao modelo das searas,
na aprendizagem da paciência de vê-las erguer
e morrer com um pouco, um pouco
de beleza.

Herberto Helder

Miguel Torga.


Para a Cecília que morreu,ontem,aos 46 anos.

Requiem por Mim

Aproxima-se o fim.
E tenho pena de acabar assim.
Em vez de natureza consumada,
Ruína humana.
Inválido do corpo
E tolhido da alma.
Morto em todos os órgãos e sentidos.
Longo foi o caminho e desmedidos
Os sonhos que nele tive.
Mas ninguém vive
Contra as leis do destino.
E o destino não quis
Que eu me cumprisse como porfiei.
E caísse de pé, num desafio
Rio feliz a ir de encontro ao mar
Desaguar,
E, em largo oceano, eternizar
O seu esplendor torrencial de rio.

Miguel Torga

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Atahualpa Yupanqui

Adolfo Casais Monteiro



EU FALO DAS CASAS E DOS HOMENS

Eu falo das casas e dos homens,
dos vivos e dos mortos:
do que passa e não volta nunca mais...
Não me venham dizer que estava materialmente
previsto,
ah, não me venham com teorias!
Eu vejo a desolação e a fome,
as angústias sem nome,
os pavores marcados para sempre nas faces trágicas
das vítimas.

E sei que vejo, sei que imagino apenas uma ínfima,
uma insignificante parcela da tragédia.
Eu, se visse, não acreditava.
Se visse, dava em louco ou profeta,
dava em chefe de bandidos, em salteador de estrada,
- mas não acreditava!

Olho os homens, as casas e os bichos.
Olho num pasmo sem limites,
e fico sem palavras,
na dor de serem homens que fizeram tudo isto:
esta pasta ensanguentada a que reduziram a terra inteira,
esta lama de sangue e alma,
de coisa a ser,
e pergunto numa angústia se ainda haverá alguma esperança,
se o ódio sequer servirá para alguma coisa...

Deixai-me chorar - e chorai!
As lágrimas lavarão ao menos a vergonha de estarmos vivos,
de termos sancionado com o nosso silêncio o crime feito instituição
e enquanto chorarmos talvez julguemos nosso o drama,
por momentos será nosso um pouco do sofrimento alheio,
por um segundo seremos os mortos e os torturados,
os aleijados para toda a vida, os loucos e os encarcerados,
seremos a terra podre de tanto cadáver,
seremos o sangue das árvores,
o ventre doloroso das casas saqueadas,
- sim, por um momento seremos a dor de tudo isto...

Eu não sei porque me caem as lágrimas,
porque tremo e que arrepio corre dentro de mim,
eu que não tenho parentes nem amigos na guerra,
eu que sou estrangeiro diante de tudo isto,
eu que estou na minha casa sossegada,
eu que não tenho guerra à porta,
- eu porque tremo e soluço?
Quem chora em mim, dizei - quem chora em nós?

Tudo aqui vai como um rio farto de conhecer os seus meandros:
as ruas são ruas com gente e automóveis,
não há sereias a gritar pavores irreprimíveis,
e a miséria é a mesma miséria que já havia...
E se tudo é igual aos dias antigos,
apesar da Europa à nossa volta, exangue e mártir,
eu pergunto se não estaremos a sonhar que somos gente,
sem irmãos nem consciência, aqui enterrados vivos,
sem nada senão lágrimas que vêm tarde, e uma noite à volta,
uma noite em que nunca chega o alvor da madrugada...

Adolfo Casais Monteiro

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Elis Regina "Folhas Secas"

José Gomes Ferreira


Choro!

Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro
as crianças violadas
nos muros da noite
húmidos de carne lívida
onde as rosas se desgrenham
para os cabelos dos charcos.

Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro
diante desta mulher que ri
com um sol de soluços na boca
— no exílio dos Rumos Decepados.

Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro
este sequestro de ir buscar cadáveres
ao peso dos poços
— onde já nem sequer há lodo
para as estrelas descerem
arrependidas de céu.

Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro
a coragem do último sorriso
para o rosto bem-amado
naquela Noite dos Muros a erguerem-se nos olhos
com as mãos ainda à procura do eterno
na carne de despir,
suada de ilusão.

Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro
todas as humilhações das mulheres de joelhos nos tapetes da súplica
todos os vagabundos caídos ao luar onde o sol para atirar camélias
todas as prostitutas esbofeteadas pelos esqueleto de repente dos espelhos
todas as horas-da-morte nos casebres em que as aranhas tecem vestidos para o sopro do
silêncio
todas as crianças com cães batidos no crispar das bocas sujas
de miséria...

Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro...

Mas não por mim, ouviram?
Eu não preciso de lágrimas!
Eu não quero lágrimas!

Levanto-me e proíbo as estrelas de fingir que choram por mim!

Deixem-me para aqui, seco,
senhor de insónias e de cardos,
neste ódio enternecido
de chorar em segredo pelos outros
à espera daquele Dia
em que o meu coração
estoire de amor a Terra
com as lágrimas públicas de pedra incendiada
a correrem-me nas faces
— num arrepio de Primavera
e de Catástrofe!

José Gomes Ferreira

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Pablo Milanés,poeta e cantor,Cubano nasceu a 24 de Fevereiro de 1943.

Há muitos anos que "Escuto", com atenção, as músicas de Pablo Milanés. Hoje,no dia do seu 67º aniversário, aqui fica,como homenagem, a sua voz.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

A Morte Saiu à Rua.

Canção com dedicatória...mas que nos faz pensar.

José Afonso morreu a 23 de Fevereiro de 1987.

De Zeca Afonso não há nada para dizer a não ser um Obrigado do tamanho do Mundo. Para mim a mais importante canção do Zeca,aquela que mais me diz,aquela que mais respeito (pela letra e pela época em que foi escrita).E por outras razões que ,por agora, não quero lembrar...é a canção "Os Vampiros". Actual,como sempre foi,é, e sempre será.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Miguel Torga


PLATEIA

Não sei quantos seremos, mas que importa?!
Um só que fosse e já valia a pena.
Aqui, no mundo, alguém que se condena
A não ser conivente
Na farsa do presente
Posta em cena!

Não podemos mudar a hora da chegada,
Nem talvez a mais certa,
A da partida.
Mas podemos fazer a descoberta
Do que presta
E não presta
Nesta vida.

E o que não presta é isto, esta mentira
Quotidiana.
Esta comédia desumana
E triste,
Que cobre de soturna maldição
A própria indignação
Que lhe resiste.


Miguel Torga

Miguel Torga


EMBONDEIRO


Por mais que mude a luz
De cada panorama,
O teu vulto persiste
Em ser a imagem triste
Da tristeza africana.

Miguel Torga
(Tete,5 de Junho de 1973)

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Brel "Les Bigotes"

Jacques Brel



AS BEATAS

Envelhecem aos saltinhos
Entre gatos e cãezinhos
As beatas
E se a velhice não vem mais lenta
É porque confundem amor com água-benta
Como todas as beatas

Se eu fosse o diabo e as visse passar
Acho que me deixava capar
Se eu fosse Deus e as visse rezar
Acho que deixava de acreditar
Graças às beatas

As beatas procissionam aos saltinhos
Entre pias de água-benta
As beatas
Não dizem nada mas falam tanto
Já tenho o ouvido que arrebenta
As beatas

Vestidas de preto como o senhor Cura
Que é muito bonzinho com qualquer criatura
Embeatam-se de olhos no chão
Como se Deus lhes dormisse sob o tacão
De beata

No sábado à noite depois do trabalho
O operário parisiense vem p'ra rua
Mas as beatas não
Fecham-se a sete chaves em casa
Para não lhes arrastarem a asa
As beatas

Que preferem encarquilhar
Entre novenas e missinhas
Orgulhosas por conseguir preservar
Jóia rara no meio das coxinhas
De beata
Morrem então aos saltinhos
Lentamente formam montinhos
As beatas
Que dão o salto mortal
Num arrepio matinal
De beata

E num céu que não existe
Anjos fazem paraíso sem tardar
Uma auréola e duas asas
E lá vão elas pelo ar
Em saltinhos... de beata

Jacques Brel
(tradução: Eduardo Maia)

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Vitorino Nemésio morreu a 20 de Fevereiro de 1978


A concha

A minha casa é concha. Como os bichos
Segreguei-a de mim com paciência:
Fechada de marés, a sonhos e a lixos,
O horto e os muros só areia e ausência.

Minha casa sou eu e os meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda, vence-a
O sal que os santos esboroou nos nichos.

E telhadosa de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!
Lareira aberta pelo vento, as salas frias.

A minha casa... Mas é outra a história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.

Vitorino Nemésio

Louis Aragon


BALADA DOS SUPLÍCIOS

- «Pudesse eu recomeçar
e este caminho seguia...»
Uma voz fala das grades
sobre a futura alegria.

Na sua cela, dois homens
por essa noite comprida,
murmuravam-lhe: «Confessa.
Ou estás cansado da vida?

Podes viver como nós,
viver, viver anos vastos...
Uma só palavra, és livre...
e podes viver de rastos...»

- «Pudesse eu recomeçar
e este caminho seguia...»
A voz que sobe das grades
canta a futura alegria.

«Apenas uma palavra,
abre-se a porta e tu sais:
já o carrasco se some,
já acabaram teus ais!

Apenas uma mentira
para mudares o destino...
sonha, sonha, sonha
o claro sol matutino!»

«Disse o que tinha a dizer
como o Rei Henrique falo:
uma missa por Paris...
p'lo meu reino, um cavalo...

Nada a fazer.» E partiram!
Cobre-o já seu sangue quente!
Era o seu único triunfo:
saber morrer inocente!

Pudesse ele recomeçar
ia esta sorte escolher?
Diz a voz que vem das grades:
- «Torná-lo-ia a fazer.

Eu morro e tu, França, ficas,
meu refúgio e minha fé.
Ó meus amigos, se morro,
vós sabeis pelo que é!»

Vieram para o prender,
falavam em alemão.
Disse-lhe um: - «Queres-te render?»
Respondeu com decisão:

- «Pudesse eu recomeçar
queria esta sorte seguir...»
A voz que sobe das grades
fala aos homens do porvir.

- «Pudesse eu recomeçar
queria esta sorte seguir.
Mesmo carregado de ferros,
que cante em mim o porvir!»

E cantava sob as balas:
«... sangrento se levantou...»
Até que nova rajada
veio por fim e o tombou.

Mas outra canção francesa
já dos seus lábios se evade
acabando a Marselhesa
para toda a Humanidade!

Louis Aragon (Paris,1897-1982)
(Tradução: Carlos de Oliveira)
(Retirado de "Os poemas da minha vida" de Urbano Tavares Rodrigues)

Jorge de Sena


"Quem a tem..."

Não hei-de morrer sem saber
qual a cor da liberdade.

Eu não posso senão ser
desta terra em que nasci.
Embora ao mundo pertença
e sempre a verdade vença,
qual será ser livre aqui,
não hei-de morrer sem saber.

Trocaram tudo em maldade,
é quase um crime viver.
Mas, embora escondam tudo
e me queiram cego e mudo,
não hei-de morrer sem saber
qual a cor da liberdade.

Jorge de Sena

José Gomes Ferreira


HOMENS:NA NOITE DO DESÂNIMO


Homens: na noite do desânimo
levanto a minha voz
para pregar o ódio.

Um ódio total e violento
a todos os narcóticos
que adormecem a realidade
com neblinas de música.

Ódio às lágrimas mal choradas diante dos poentes,
à alegria das crianças mortas que teimam em rir nos olhos dos velhos,
às noites de insónia por causa de uma mulher,
às flores que iluminam os mortos de alma,
ao álcool da arte-pura-para-esquecer,
aos versos por dentro das palavras,
aos versos com túneis acesos por dentro das palavras,
aos pássaros a cantarem os perfumes das árvores secas,
às valsas com voos de tule
- e até ao sol
que diminui o mundo
em indiferença de continuar.

Ódio ao mar a modelar deuses
nos nossos corpos feios de tanto se julgarem belos.

Ódio à primavera
- essa mulher voadora
que entra pelas janelas
com asas azuis
para que a nossa dor
pareça preguiça de existir.

Ódio às serenatas que o luar faz do céu à terra,
às pétalas nos cabelos dos fantasmas ao vento,
às mãos-dadas nas sendas brancas dos idílios,
à pele de frio doce dos amantes,
aos colos das mães a embalarem futuro,
às crianças com céus do tamanho dos olhos,
às cartas de paixão a prometerem suicídios (para beijos mais fundos),
às insinuações de paraíso nas vozes de pedir esmola,
às escadas de corda nos olhos das noivas das trapeiras,
às danças a perfumarem de sexo a derrota,
às ninfas disfarçadas em canteiros de jardins,
e aos recantos foscos
onde escondemos a Verdade
em galerias de evasão
- só para que os nossos olhos continuem límpidos
a ignorarem todos os negrumes
com escadas até ao centro da terra.

Ódio ao disfarce, às máscaras, ao «falemos noutra coisa»,
aos desvios, às fontes dos claustros, ao «vamos logo ao cinema»,
aos problemas de xadrez, aos dramas de ciúme, às infantas do fogo das lareiras,
e aos que não têm a coragem
de estacar, pálidos,
com unhas na carne
a olhar de frente,
sem arrancar os olhos,
os caminhos dos mortos sagrados
até aos horizontes onde os homens se ofuscam das manhãs virgens.

Ódio a todas as fugas, a todos os véus,
a todas as aceitações, a todas as morfinas,
a todas as mãos ocas das prostitutas,
a todas as mulheres nuas em coxins de afagos,
para nos obrigarem a esquecer...

Mas eu não quero esquecer, ouviram?
Não quero esquecer!

Quero lembrar-me sempre, sempre e sempre
deste minuto de abismo,
para transmiti-lo de alma em alma,
de treva em treva,
de corvo em corvo,
de escarpa em escarpa,
de esqueleto em esqueleto,
de forca em forca,
até ao Ranger do Grande Dia
para a Salvação do Mundo
sem anjos
nem demónios
- mas só homens e Terra.

José Gomes Ferreira

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Sidónio Muralha




O barco era belo
rasgaram-lhe as velas,
intrusos cuspiram
no seu tombadilho
e o homem sem barco
seguiu pela estrada
com ondas redondas
rolando nos pés.

Gastou os sapatos
de tanto horizonte,
quis beijar a vida
ninguém o deixou,
quis comer, quis beber,
disseram que não,
sentiu-se doente
mas não tinha cama.

Soprou temporais
no sangue, nas veias,
e todo o seu corpo
foi fúria e foi quilha,
cercaram-no logo
com altos rochedos
e o homem sem barco
teve que evitá-los

Na estrada sem nada
dos tristes humanos
com pernas-farrapos
o homem lá vai,
sem eira nem beira
de bolsos vazios
com os olhos ocos
marejados de mar.

Sidónio Muralha

António Maria Eusébio ( O Calafate)


A Quinta da Panasqueira

Mote

Fui apalpar as gamboas
Que a quinteira tem na quinta,
Já tem marmelos maduros,
O seu bastardo já pinta.

Glosa

Sou mestre na agricultura,
meu saber ninguém disputa,
gosto de apalpar a fruta
quando está quase madura…
Gosto do que tem doçura;
Quero e gosto das mais pessoas
para apalpar coisas boas
da quinta da Panasqueira,
com licença da quinteira,
fui apalpar as gamboas.

Por toda a parte que andei
dei cambalhotas e saltos,
depois de apalpar pelos altos
pelos baixos apalpei.
Por toda a parte encontrei
fruta branca e fruta tinta;
para que a dona não se sinta
nunca direi mal da boda,
apalpei a fruta toda
que a quinteira tem na quinta.

Neste tão lindo arvoredo
não há fruta como a sua,
foi criada em boa lua
para amadurecer mais cedo.
Menina, não tenha medo
que os seus frutos estão seguros,
ou sejam moles ou duros
todos a têm em estima,
na sua quinta de cima
já tem marmelos maduros.

Tem uma árvore escondida
Num regato ao pé de um poço,
que dá fruta sem caroço
chamada gostos da vida.
Dessa fruta pretendida
que a menina tem na quinta,
se acaso tem uva tinta
a menina dê-me um cacho,
que na sua quinta de baixo
o seu bastardo já pinta.


A resposta da quinteira

Mote

Fui apalpar os tomates
que tinha o meu hortelão,
mostrou-me o nabal que tinha,
meteu-me o nabo na mão.


Glosa

Sou mestra na agricultura,
tenho terra para cavar,
gosto sempre de apalpar
se a enxada é mole ou dura.
Ser amiga da verdura
não são nenhuns disparates;
enchi alguns açafates
de tomateiros de cama
depois de apalpar a rama
fui apalpar os tomates.

As sementes tomateiras
nascem por dentro e por fora
semeiam-se a toda a hora
dentro de fundas regueiras.
Tão brilhantes sementeiras
dão gosto e satisfação.
Dentro do meu regueirão
dão-me as ramas pelos joelhos
que tomates tão vermelhos
que tinha o meu hortelão!

Só de vê-los e apalpá-los
faz andar a gente louca
faz crescer água na boca
e a língua dar estalos.
Meu hortelão tem regalos,
tem hortaliça fresquinha
no vale da carapinha
tem um tomateiro macho,
abriu-me a porta de baixo
mostrou-me o nabal que tinha.

Tinha grelos e nabiças,
tinha tomates graúdos,
tinha nabos ramalhudos
com as cabeças roliças.
Tão brilhantes hortaliças
meteram-me a tentação;
era franco o hortelão,
deu-me uma couve amarela
para me dar gosto à panela,
meteu-me o nabo na mão.

(Versos brejeiros e satíricos,
cantigas para guitarra).

Fonte: Antologia de Poesia Erótica e Satírica Portuguesa - Selecção, prefácio e notas de Natália Correia.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Adolfo Casais Monteiro


A PALAVRA IMPOSSÍVEL

Deram-me o silêncio para eu guardar dentro de mim
A vida que não se troca por palavras.
Deram-mo para eu guardar dentro de mim
As vozes que só em mim são verdadeiras.
Deram-mo para eu guardar dentro de mim
A impossível palavra da verdade.

Deram-me o silêncio como uma palavra impossível,
Nua e clara como o fulgor duma lâmina invencível,
Para eu guardar dentro de mim,
Para eu ignorar dentro de mim
A única palavra sem disfarce -
A Palavra que nunca se profere.

Adolfo Casais Monteiro

Zeca Afonso

Giordano Bruno é queimado, em Roma, na fogueira da Inquisição a 17 de Fevereiro de 1600


Verdade e Mentira


Neste livro do mundo
Quase perfeito
Preto e branco irmanados
De igual jeito
Quem não foi a tribunal
Quem teve mão
Nos juízes da Santa Inquisição
Em menino te ensinaram
mentiras que a morte leva
para outra morte bem longe
de pensares que outra contrária
Com a tua se aglomera
Neste livro de concórdia
Só tem guarida infinito
Por Giordano Bruno amado
Como se fora seu filho
Acima da besta fera
que na fogueira o lançava
aquela verdade brilha
à morte à morte diziam
os que não adivinhavam
que era verdade a mentira
Até o mar se acomoda
e paciente requebra
Enquanto gritas à toa
A tua verdade cega
Conta as areias da praia
O grande mago do mundo?
Só não mente quem não sente
Que o mistério não tem fundo

Zeca Afonso.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Mozart

Lisa Gerrard

Jorge de Sousa Braga.


PORTUGAL


Eu tenho vinte e dois anos e tu às vezes fazes-me sentir como se tivesse
oitocentos
Que culpa tive eu que D. Sebastião fosse combater os infiéis ao norte de
África
só porque não podia combater a doença que lhe atacava os órgãos genitais
e nunca mais voltasse
Quase chego a pensar que é tudo uma mentira
que o Infante D. Henrique foi uma invenção do Walt Disney
e o Nuno Álvares Pereira uma reles imitação do Príncipe Valente
Portugal
Não imaginas o tesão que sinto quando ouço o hino nacional
(que os meus egrégios avós me perdoem)
Ontem estive a jogar póker com o velho do Restelo
Anda na consulta externa do Júlio de Matos
Deram-lhe uns electrochoques e está a recuperar
aparte o facto de agora me tentar convencer que nos espera um futuro de
rosas
Portugal
Um dia fechei-me no Mosteiro dos Jerónimos a ver se contraía a febre do
Império
mas a única coisa que consegui apanhar foi um resfriado
Virei a Torre do Tombo do avesso sem lograr uma pétalala que fosse
das rosas que Gil Eanes trouxe do Bojador
Portugal
Vou contar-te uma coisa que nunca contei a ninguém
Sabes
Estou loucamente apaixonado por ti
Pergunto a mim mesmo
Como me pude apaixonar por um velho decrépito e idiota como tu
mas que tem o coração doce ainda mais doce que os pastéis de Tentúgal
e o corpo cheio de pontos negros para poder espremer à minha vontade
Portugal estás a ouvir-me?
Eu nasci em mil novecentos e cinquenta e sete Salazar estava no poder nada
de ressentimentos
O meu irmão esteve na guerra tenho amigos emigrantes nada de
ressentimentos
um dia bebi vinagre nada de ressentimentos
Portugal depois de ter salvo inúmeras vezes os Lusíadas a nado na piscina
municipal de Braga
ia agora propor-te um projecto eminentemente nacional
Que fôssemos todos a Ceuta à procura do olho que Camões lá Deixou
Portugal
Sabes de que cor são os meus olhos?
São castanhos como as da minha mãe
Portugal gostava de te beijar muito apaixonadamente
na boca

Jorge de Sousa Braga
(De manhã vamos todos acordar com uma pérola no cu,1981)

Carlos Paredes - Canto de Embalar

Carlos Paredes nasceu a 16 de Fevereiro de 1925.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

António Ramos Rosa


O BOI DA PACIÊNCIA


Noite dos limites e das esquinas nos ombros
noite por de mais aguentada com filosofia a mais
que faz o boi da paciência aqui? que fazemos nós aqui?
este espectáculo que não vem anunciado
todos os dias cumprido com as leis do diabo
todos os dias metido pelos olhos adentro
numa evidência que nos cega até quando?
Era tempo de começar a fazer qualquer coisa
os meus nervos estão presos na encruzilhada
e o meu corpo não é mais que uma cela ambulante
e a minha vida não é mais que um teorema
por demais sabido!
Na pobreza do meu caderno
como inscrever este céu que suspeito
como amortecer um pouco a vertigem desta órbita
e todo o entusiasmo destas mãos de universo
cuja carícia é um deslizar de estrelas?

Há uma casa que me espera
para uma festa de irmãos
há toda esta noite a negar que me esperam
e estes rostos de insónia
e o martelar opaco num muro de papel
e o arranhar persistente duma pena implacável
e a surpresa subornada pela rotina
e o muro destrutível destruindo as nossas vidas
e o marcar passo à frente deste muro
e a força que fazemos no silêncio para derrubar o muro
até quando? até quando?

Teoricamente livre para navegar entre estrelas
minha vida tem limites assassinos
Supliquei aos meus companheiros.Mas fuzilem-me!
Inventei um deus só para que me matasse
Muralhei-me de amor e o amor desabrigou-me
Escrevi cartas a minha mãe desesperadas
colori mitos e distribuí-me em segredo
e ao fim ao cabo recomeçar
Mas estou cansado de recomeçar!
Quereria gritar:
Dêem árvores para um novo recomeço!
Aproximem-me a natureza até que a cheire!
Desertem-me este quarto onde me perco!
Deixem-me livre por um momento em qualquer parte
para uma meditação mais natural e fecunda
que me afogue o sangue!
Recomeçar!

Mas originalmente com uma nova respiração
que me limpe o sangue deste polvo de detritos
que eu sinta os pulmões com duas velas pandas
e que eu diga em nome dos mortos e dos vivos
em nome do sofrimento e da felicidade
em nome dos animais e dos utensílios criadores
em nome de todas as vidas sacrificadas
em nome dos sonhos em nome das colheitas
em nome das raízes em nome dos países
em nome das crianças
em nome da paz
que a vida vale a pena
que ela é a nossa medida
que a vida é uma vitória que se constrói todos os dias
que o reino da bondade dos olhos dos poetas
vai começar na terra sobre o horror e a miséria
que o nosso coração se deve engrandecer
por ser tamanho de todas as esperanças
e tão claro como os olhos das crianças
e tão pequenino que uma delas possa brincar com ele

Mas o homenzinho diário recomeça no seu giro de desencontros
A fadiga substituiu-lhe o coração
As cores da inércia giram-lhe nos olhos
Um quarto de aluguer
Como preservar este amor
ostentando-o na sombra
Somos colegas forçados
Os mais simples são os melhores
nos seus limites conservam a humanidade
Mas este sedento lúcido e implacável
familiar do absurdo que o envolve
como uma vida de relógio a funcionar
e um mapa da terra com rios verdadeiros
correndo-lhe na cabeça
como poderá suportar viver na contenção total
na recusa permanente a este absurdo vivo?

Ó boi da paciência que fazes tu aqui?
Quis tornar-te amável ser teu familiar
fabriquei projectos com teus cornos
lambi o teu focinho acariciei-te em vão

A tua marcha lenta enerva-me e satura-me
As constelações são mais rápidas nos céus
a terra gira com um ritmo mais verde que o teu passo
Lá fora os homens caminham realmente
Há tanta coisa que eu ignoro
e é tão irremediável este tempo perdido!
Ó boi da paciência sê meu amigo!

António Ramos Rosa
(O Grito Claro,1958)

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Sophia Mello Breyner Andresen


Esta Gente

Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco

Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis

Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre

Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome

E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada

Meu canto se renova
E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
E de um tempo justo

Sophia de Mello Breyner Andresen

Fausto Papetti "My Way"

Na minha infância o Carnaval era o Entrudo.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Pablo Neruda


O teu riso

Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas não
me tires o teu riso.

Não me tires a rosa,
a lança que desfolhas,
a água que de súbito
brota da tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.

A minha luta é dura e regresso
com os olhos cansados
às vezes por ver
que a terra não muda,
mas ao entrar teu riso
sobe ao céu a procurar-me
e abre-me todas
as portas da vida.

Meu amor, nos momentos
mais escuros solta
o teu riso e se de súbito
vires que o meu sangue mancha
as pedras da rua,
ri, porque o teu riso
será para as minhas mãos
como uma espada fresca.

À beira do mar, no outono,
teu riso deve erguer
sua cascata de espuma,
e na primavera, amor,
quero teu riso como
a flor que esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.

Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
tortas da ilha,
ri-te deste grosseiro
rapaz que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando meus passos vão,
quando voltam meus passos,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria.

Pablo Neruda

Humberto Delgado morreu a 13 de Fevereiro de 1965


(Praça Carlos Alberto,no Porto,em 14 de Maio de 1958)

Agostinho da Silva nasceu a 13 de Fevereiro de 1906


ALGUM DIA

Algum dia um novo Papa
anunciará altivo
que Deus é raiz quadrada
de um quantum negativo

e o Deus que tanto procuro
em que atingido me afundo
é aquele ser-não-ser
do que acontece no mundo

da matéria mais que densa
é que é divertido ser
ali se nada acontece
tudo pode acontecer

Prof. Agostinho da Silva

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Acácio de Paiva.


RECEITA INCOMPLETA


A Direcção Geral de Sanidade
(Ou antes,de Saúde) explica à gente
Que é muito fácil combater o agente
Da gripe,agora em plena actividade.

Deve comer-se até à saciedade
Ter sempre a barriguinha farta e quente
E não deixa de ser conveniente
Beber-se,uma certa quantidade.

Muito agradeço à Direcção amiga
O citado conselho,que é de graça,
Pois não sou atacado desta feita;

Falta-me unicamente que ela diga
De onde é posso mandar vir a massa
Para o aviamento da receita...

Acácio de Paiva

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Miguel Torga.


A Vida


Povo sem outro nome à flor do seu destino;
Povo substantivo masculino,
Seara humana à mesma intensa luz;
Povo vasco, andaluz,
Galego, asturiano,
Catalão, português:
O caminho é saibroso e franciscano
Do berço à sepultura;
Mas a grande aventura
Não é rasgar os pés
E chegar morto ao fim;
É nunca, por nenhuma razão,
Descrer do chão
Duro e ruim!

Miguel Torga

Um Homem de palavra....Palavras para quê?

Miguel Torga.


Miniatura


Pois eu gosto de crianças!

Já fui criança, também…

Não me lembro de o ter sido;

Mas só ver reproduzido

O que fui, sabe-me bem.


É como se de repente

A minha imagem mudasse

No cristal duma nascente,

E tudo o que sou voltasse

À pureza da semente.

Miguel Torga
(Coimbra,11 de Abril de 1957)

Andy Williams.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

David Mourão Ferreira


Noite Apressada

Era uma noite apressada
depois de um dia tão lento.
Era uma rosa encarnada
aberta nesse momento.
Era uma boca fechada
sob a mordaça de um lenço.
Era afinal quase nada,
e tudo parecia imenso!

Imensa, a casa perdida
no meio do vendaval;
imensa, a linha da vida
no seu desenho mortal;
imensa, na despedida,
a certeza do final.

Era uma haste inclinada
sob o capricho do vento.
Era a minh'alma, dobrada,
dentro do teu pensamento.
Era uma igreja assaltada,
mas que cheirava a incenso.
Era afinal quase nada,
e tudo parecia imenso!

Imensa, a luz proibida
no centro da catedral;
imensa, a voz diluída
além do bem e do mal;
imensa, por toda a vida,
uma descrença total!

David Mourão-Ferreira, in "À Guitarra e à Viola"

domingo, 7 de fevereiro de 2010

O sexo comanda a vida / Pedro Barroso.

Sebastião da Gama morreu a 7 de Fevereiro de 1952.


Meu País Desgraçado

Meu país desgraçado!...
E no entanto há Sol a cada canto
e não há Mar tão lindo noutro lado.
Nem há Céu mais alegre do que o nosso,
nem pássaros, nem águas ...

Meu país desgraçado!...
Por que fatal engano?
Que malévolos crimes
teus direitos de berço violaram?

Meu Povo
de cabeça pendida, mãos caídas,
de olhos sem fé
— busca, dentro de ti, fora de ti, aonde
a causa da miséria se te esconde.

E em nome dos direitos
que te deram a terra, o Sol, o Mar,
fere-a sem dó
com o lume do teu antigo olhar.

Alevanta-te, Povo!
Ah!, visses tu, nos olhos das mulheres,
a calada censura
que te reclama filhos mais robustos!

Povo anémico e triste,
meu Pedro Sem sem forças, sem haveres!
— olha a censura muda das mulheres!
Vai-te de novo ao Mar!
Reganha tuas barcas, tuas forças
e o direito de amar e fecundar
as que só por Amor te não desprezam!

Sebastião da Gama

Reinaldo Ferreira


O PONTO

Mínimo sou,
Mas quando ao Nada empresto.
A minha elementar realidade
O Nada é só o resto.

Reinaldo Ferreira.

Armando Silva Carvalho.


OS RESÍDUOS DO CAMPO

II

Um boi bate
nas pedras

o sapateiro
na sola

e a mulher
no filho.

Mas todos
estão batendo
no silêncio.

Armando Silva Carvalho.

Ruy Cinatti.


EM DEFINITIVO


Já ganhei o dia
porque fui autêntico.
Atingi o mínimo
sem me disfarçar.

A história não tem
nada de maior.
Um dia na vida.
Chega acreditar.

Ruy Cinatti
(30/10/1969)

Pablo Neruda.


ESTÃO AQUI


Hei-de chamar aqui como se aqui estivessem.
Irmãos:sabei que a nossa luta
continuará na terra.

Continuará na fábrica,no campo,
na rua,na salitreira.
Na cratera do cobre verde e rubro,
no carvão e na sua horrível gruta.
Nossa luta está em toda a parte,
e em nosso coração,estas bandeiras
que presenciaram vossa morte,
que se empaparam bem no vosso sangue
hão-de multiplicar-se como as folhas
da infinita Primavera.

Pablo Neruda.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Jorge de Sena.


PURGATÓRIO


As dores do mundo não as sofre o mundo.
Embora os matem,torturem,entristeçam,
embora lhes violem quem mais querido,
embora percam tudo o que não tinham,
os homens sofrem porque sofrer dói menos.

Mas do centro do universo,
do coração que a humanidade ainda não tem,
do âmago das dores que ainda não sente,
da terra a passar toda pela carne,
da carne apenas vida sobre a terra,
uns poucos homens não sofrem nem contemplam:
ardem nas chamas que aos outros faltam.


Jorge de Sena
(Tancos,24/9/1943)

Paciência.


Sempre ouvi dizer que a paciência não se vendia...nem nas farmácias! Nada mais errado agora já se vende e em "pacotes" de 5 litros. É,como não poderia deixar de ser, sujeito a receita médica e só para maiores...

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Bangladesh por Joan Baez.

Esqueça os Problemas. I Will Survive.

Pedro Homem de Mello.


Solidão

Ó solidão! À noite, quando, estranho,
Vagueio sem destino, pelas ruas,
O mar todo é de pedra... E continuas.
Todo o vento é poeira... E continuas.
A Lua, fria, pesa... E continuas.
Uma hora passa e outra... E continuas.
Nas minhas mãos vazias continuas,
No meu sexo indomável continuas,
Na minha branca insónia continuas,
Paro como quem foge. E continuas.
Chamo por toda a gente. E continuas.
Ninguém me ouve. Ninguém! E continuas.
Invento um verso... E rasgo-o. E continuas.
Eterna, continuas...
Mas sei por fim que sou do teu tamanho!

Pedro Homem de Mello
(O Rapaz da Camisola Verde,1954)

Armindo Rodrigues (Lisboa,1904 - Lisboa,1993)


XC


Pouco é um homem e,no entanto,nele
cabe tudo o que existe e fica ainda
espaço bastante para poder negá-lo.

(Beleza Prometida,1950)

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Victor Jara e Pablo Neruda.

Carlos Drummond de Andrade



A FREDERICO GARCIA LORCA

Sobre teu corpo, que há dez anos
se vem transfundindo em cravos
de rubra cor espanhola,
aqui estou para depositar
vergonha e lágrimas.

Vergonha de há tanto tempo
viveres – se morte é vida –
sob chão onde esporas tinem
e calcam a mais fina grama
e o pensamento mais fino
de amor, de justiça e paz.

Lágrimas de nocturno orvalho,
não de mágoa desiludida,
lágrimas que tão-só destilam
desejo e ânsia e certeza
de que o dia amanhecerá.

(Amanhecerá.)

Esse claro dia espanhol,
composto na treva de hoje
sobre teu túmulo há de abrir-se,
mostrando gloriosamente
- ao canto multiplicado
de guitarra, gitano e galo –
que para sempre viverão

os poetas martirizados.

Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Fernando Assis Pacheco


SONETO CONTRA AS PESPORRÊNCIAS


É favor não pedirem a esta poesia
que faça o jeito às alegadas tendências
do tempo nem às vãs experiências
que sempre a deixaram de mão fria

o que iria bem mas mesmo bem seria
num jornal a coluna das ocorrências
as coisas da vida mais que as pesporrências
editoriais do comentador do dia

o que vai mal com ela são as petulâncias
de que se vestem muitas redundâncias
dando-se públicos ares de sabedoria

que o leitor farto das arrogâncias
magistrais troca por outras instâncias
onde pode mandá-las pra casa da tia

Fernando Assis Pacheco
(A Profissão Dominante,1982)

Sophia Mello Breyner Andresen


(Foto Fel de Cão)

Espera

Dei-te a solidão do dia inteiro.
Na praia deserta, brincando com a areia,
No silêncio que apenas quebrava a maré cheia
A gritar o seu eterno insulto,
Longamente esperei que o teu vulto
Rompesse o nevoeiro.

Sophia de Mello Breyner Andresen
(Dia do Mar,1947)

"Tête de Femme" de Pablo Picasso foi hoje vendida por 9,3 milhões de euros.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

D.I.M. a vida é dura.


Esta careca é famosa.
(Foto,má,de Fel de Cão)

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Miguel Torga.


(Foto da Net)



Fado


Tem cada povo o seu fado
Já talhado
No livro da natureza.
Um destino reservado,
De riqueza,
De pobreza,
Consoante o chão lavrado.


E nada pode mudar
A fatal condenação.
No solo que lhe calhar,
A humana vegetação
Tem de viver, vegetar,
A cantar
Ou a chorar
Às grades dessa prisão.

Miguel Torga.

Chico Buarque.