CADA POEMA
Cada poema um pássaro que foge
do sítio assinalado pela praga.
Cada poema um traje da morte
pelas ruas e praças inundadas
na cera letal dos vencidos.
Cada poema um passo para a morte,
uma falsa moeda de resgate,
um tiro ao alvo a meio da noite
perfurando as pontes sobre o rio,
cujas águas adormecidas viajam
da velha cidade para os campos
onde o dia prepara as suas fogueiras.
Cada poema um tacto hirto
do que jaz na pedra das clínicas,
um ávido anzol que percorre
o limo brando das sepulturas.
Cada poema um lento naufrágio do desejo,
um ranger dos mastros e cabos
que sustentam o peso da vida.
Cada poema um estrondo de panos que derrubam
sobre o rugir gelado das águas
o branco aparelho do velame.
Cada poema invadindo e desgarrando
a amarga teia do enfado.
Cada poema nasce de uma cega sentinela
que grita ao fundo oco da noite
o santo e a senha da sua desventura.
Água de sonho, fonte de cinza,
pedra porosa dos matadouros,
madeira da sombra das sempre-vivas,
sino que dobra pelos condenados,
óleo funeral de duplo fio,
quotidiano sudário do poeta,
cada poema derrama sobre o mundo
o azedo cereal da agonia.
Álvaro Mutis
(1923-2013)
Tradução: Nuno Júdice
Eloy Sánchez Rosillo (Tarde de Junho)
Há 5 horas
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