ALJUBE, 1938
Inerte e vã, cai a penumbra,
indiferentemente,
por sobre os movimentos nítidos, ou indecisos,
as palavras
com segurança proferidas,
ou hesitantes, de timidez ou espanto,
os risos arejados e salubres,
ou as lágrimas sem remédio
das grandes desolações,
ou dos grandes dramas.
Inerte e vã, cai a penumbra,
impassível e inelutável,
ao mesmo tempo que, por isso mesmo, justiceira,
pois tudo, afinal, se equivale e se anula,
na sucessão voraz
dos sentimentos e das circunstâncias.
Inerte e vã, cai a penumbra.
Mas eu, decidido, fito-a,
ou, antes, fito o que ela envolve e adoça,
em lugar de também me abandonar a ela,
com a sua sedução de imponderável sono.
Inerte e vã, cai a penumbra.
É o fim da tarde no horizonte manso,
que no rio acende um último lampejo,
que só adivinho,
e em mim reata uma pungente saudade,
nem percebo de quê,
nem percebo de quando,
à força de ser com certeza de mim,
de antes de eu ter saudades de nada.
Inerte e vã, cai a penumbra.
Este ruído que oiço é o de um cão a ladrar,
ou o de portas fechando-se,
ou, mais simplesmente,
o do meu coração a querer evadir-se?
Agora, os cais devem estar apinhados,
o rio magoado lentamente desliza,
e a brisa que sopra as arestas morde
dos edifícios em monte
que as colinas cavalgam.
Há incêndios finais de dolorosas chagas
nalgumas vidraças que os derradeiros raios
do sol tange ainda.
Um surdo clamor cresce das ruas cheias
de uma gente agitada, que à pressa caminha,
e em tropel assalta os carros eléctricos
que telintam aflitos.
É a hora do enorme desafio
da alegria do cansaço vencido,
da proximidade do jantar fumegante,
da preguiça, do ócio, da intimidade.
Os automóveis cruzam-se,
ultrapassam-se, velozes,
de buzinas febris ferindo os ouvidos.
Nos parapeitos das janelas amargas,
com grades e redes poeirentas e vis,
alguns pombos descuidados debicam
as migalhas de pão que nós lhes deitamos
com os dedos crispados de amor e de angústia.
Inerte e vã, cai a penumbra.
E em cada um de nós, que um pudor emudece,
chora, mais negro, mais cruel, mais duro,
mais um dia inútil, perdido para a vida.
Armindo Rodrigues
(1904-1938)
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