terça-feira, 28 de julho de 2015

 DESENCANTO


Eu faço versos como quem chora
De desalento , de desencanto
Fecha meu livro se por agora
Não tens motivo algum de pranto

Meu verso é sangue , volúpia ardente
Tristeza esparsa , remorso vão
Dói-me nas veias amargo e quente
Cai gota à gota do coração.

E nesses versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre
Deixando um acre sabor na boca

Eu faço versos como quem morre.


Manuel Bandeira
(1886-1968)
 UM DIA DESTES.


Um dia destes tenho o dia inteiro para morrer,
espero que não me doa,
um dia destes em todas as partes do corpo,
onde por enquanto ninguém sabe de que maneira,
um dia inteiro para morrer completamente,
quando a fruta com seus muitos vagares amadura,
o dom – que é um toque fundo na ferida da inteligência:
oh será que um poema entre todos pode ser absoluto?
:escrevê-lo, e ele ser a nossa morte na perfeição de poucas
                                                                         linhas


Herberto Helder
(1930-2015)
In "Servidões"
TUDO O QUE FAÇO OU MEDITO

Tudo o que faço ou medito
Fica sempre pela metade,
Querendo, quero o infinito.
Fazendo, nada é verdade.

Que nojo de mim me fica
Ao olhar para o que faço!
Minha alma é lúcida e rica,
E eu sou um mar de sargaço ---

Um mar onde bóiam lentos
Fragmentos de um mar de alem...
Vontades ou pensamentos?
Não o sei e sei-o bem.


Fernando Pessoa
(1888-1935)

segunda-feira, 27 de julho de 2015

DA VOZ DAS COISAS



Só a rajada de vento
dá o som lírico
às pás do moinho.

Somente as coisas tocadas
pelo amor das outras
têm voz.

   
Fiama Hasse Pais Brandão
 (1938-2007)
A CRIANÇA QUE FUI CHORA NA ESTRADA.


A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.



Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.


Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,


Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.


Fernando Pessoa
(1888-1935)

quinta-feira, 23 de julho de 2015

 UMA PAIXÃO FRIA ENDURECE AS MINHAS LÁGRIMAS
 
 
Uma paixão fria endurece as minhas lágrimas.

Pesam as pedras nos meus olhos: alguém

me destroi ou me ama.
 

POUSEI AS MINHAS MÃOS NUM ROSTO

Pousei as minhas mãos num rosto e retirei-as feridas pelo amor.

Agora,

o esquecimento acaricia as minhas mãos.
 

ATRÁS DA OBSCURIDADE ESTÃO OS ROSTOS QUE ME ABANDONARAM

Atrás da obscuridade estão os rostos que me abandonaram.

Eu vi a sua pele trabalhada por relâmpagos. Agora

já só vejo, no instante amarelo,

o esplendor das suas longínquas pálpebras.


Antonio Gamoneda
In"Ardem As Perdas", ,(p.19, 23, 49)
Trad. de Jorge Melícias

 TALVEZ ME SUCEDA EM MIM MESMO


Talvez me suceda em mim mesmo. Não sei quem mas alguém matou
 em mim. Também ontem pressentia a desaparição e estava ameaçado pela luz, mas hoje é outra a faca diante dos meus olhos.


Não quero ser o meu próprio estranho, estou entorpecido pelas visões. É difícil

por todos os dias luz nas veias e trabalhar na retracção de rostos desconhecidos até que se convertam em rostos amados e depois chorar porque vou abandoná-los ou porque eles me vão abandonar.

Que

estupidez ter medo à beira da falsidade, que cansaço

abandonar a inexistência e

morrer depois todos os dias.



Antonio Gamoneda
 In "Ardem as Perdas" quasi (2004)
Trad. de Jorge Melícias


DAS VIOLENTAS HUMIDADES


Das violentas humidades, dos

lugares onde se entrecruzam

resíduos de tormentas e soluços,

vem

esta pena arterial, esta memória

despedaçada.

Ainda enlouquecem

aquelas mães nas minhas veias.


Antonio Gamoneda
In "Ardem as Perdas"
Trad. de Jorge Melícias

quarta-feira, 22 de julho de 2015

 AMEI AS DESAPARIÇÕES


Amei as desaparições e agora o último rosto saiu de
mim.

Atravessei as cortinas brancas:

já só há luz dentro dos meus olhos.


Antonio Gamoneda
In "Livro do Frio"
Trad. de José Bento

segunda-feira, 20 de julho de 2015


O TERRORISTA OLHA


A bomba vai explodir no bar às treze e vinte.
São neste momento treze e dezasseis.
Alguns conseguem ainda entrar,
alguns sair.

O terrorista passou já para o outro lado da rua.
A esta distância ficará livre de perigo
e, quanto a vista, é como no cinema:

Uma mulher de casaco amarelo… entra.
Um homem de óculos escuros… sai.
Rapazes de jeans… conversam.
Treze horas, dezassete minutos e quatro segundos.
Aquele baixinho tem sorte e senta-se na vespa,
mais um tipo alto que entra.

Treze horas, dezassete minutos e quarenta segundos.
Passa uma moça de fita verde nos cabelos.
Só que o autocarro oculta-a.

Treze e dezoito.
A rapariga desapareceu.
Se foi bastante estúpida para entrar ou não,
isso se saberá pelas notícias.

Treze e dezanove.
Parece que ninguém entra.
Há porém um careca gordo que sai.
Mas olha, parece que procura algo nos bolsos,
faltam treze segundos para as treze e vinte,
e ele volta a entrar em busca das luvas que perdeu.

São treze e vinte.
Como o tempo voa.
Deve ser agora.
Ainda não.
Sim, é agora.
A bomba… explode.
 
Wislawa Szymborska
(1923-2012)
Trad. de Júlio Sousa Gomes
 


  OS AMIGOS
 
 
Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
 ─ Temos  um talento doloroso e obscuro.
construímos um lugar de silêncio.
De paixão. 
 
 
Herberto Helder
(1930-2015)

domingo, 19 de julho de 2015

VI APENAS UMA VEZ


Vi apenas uma vez
um sol tão ensanguentado.
            E nunca mais
Descia funesto sobre o horizonte
e parecia
que alguém havia escancarado as portas do inferno.
Perguntei pelo observatório astronómico
e hoje sei o porquê.


O inferno, conhecemos: está em toda parte
e caminha sobre duas pernas.
            E o paraíso?
Talvez o paraíso nada mais seja
além de um sorriso
           por muito tempo esperado
e lábios
           que murmuram o nosso nome.
E aquele frágil instante fabuloso
quando depressa podemos esquecer-nos
do inferno.

Jaroslav Seifert
(1901-1986)
Trad. de Aleksandar Jovanovic.



NOCTURNO

Por onde quer que minha alma
navegue, ou ande, ou voe, tudo, tudo
é seu. Que tranquila
em toda a parte, sempre;
agora na alta proa
que em duas pratas abre o azul profundo,
descendo ao fundo ou subindo ao céu!

Oh, que serena a alma
quando se apoderou,
como rainha solitária e pura,
do seu império infindo!

Juan Ramón Jiménez
 In "Antologia Poética"
Trad. de José Bento



 HERANÇA



 Que rosa vermelha entre loureiros
há ressuscitado?
A pé, companheiros
que os mortos estão de pé ao nosso lado.

Roxos de fome, angústia, sede e morte
na solidão
Nada nos importe
senão a aurora que levamos no coração.

Que nos arranquem língua, veias, olhos, nervos
A pele que reste
Não é dos servos
o relâmpago espantoso que nos veste.


Papiniano Carlos
(1918-2012)
In "Caminhemos Serenos"

FINGIA UM ROSTO NO AR


Fingia um rosto no ar (fome e marfim dos hospitais
andaluzes); na extremidade do silêncio, ele ouvia a
campainha dos agonizantes. Olhava-nos e nós sentía-
mos a nudez da existência. Velozmente, abria todas
as portas e derramava o vinho sobre o gelo de ama-
nhecer. Depois, a soluçar, mostrava-nos as garrafas
vazias.


Antonio Gamoneda
In "Livro do Frio"
Trad. de José Bento
 PRANTO NA LUCIDEZ


Pranto na lucidez, verdades côncavas:
"Não vale nada a vida, /a vida não vale nada."
Recordai esta canção antes de olhar meus olhos;
olhai meus olhos no instante da neve.

Antonio Gamoneda
In "Livro do Frio"
Trad. de José Bento.
 ARDEM AS PERDAS


Ardem as perdas. Já ardiam
na cabeça da minha mãe. Antes
ardeu a verdade e ardeu
também o meu pensamento. Agora
a minha paixão é a indiferença.
                                 Escuto
na madeira dentes invisíveis


Antonio Gamoneda
In "Ardem as Perdas"
Trad. de Jorge Melícias"




                            
 HÁ UMA ERVA


Há uma erva cujo nome não se sabe; assim foi a
minha vida.


Regresso a casa atravessando o Inverno: esquecimento
e luz sobre as roupas húmidas. Os espelhos estão
vazios e nos pratos cega a solidão.


Ah a pureza das facas abandonadas.


Antonio Gamoneda
In "Livro do Frio"
Trad. de José Bento.



 NA SUA CANÇÃO

Na sua canção havia cordas sem esperança: um som
longínquo de mulheres cegas (mães descalças no pre-
sídio transparente do sal).


Soava a morte e a orvalho; depois, tangia canas
negras: era o cantor das feridas. Sua memória ardia
no país do vento, na brancura dos sanatórios aban-
donados.



Antonio Gamoneda
In "Livro do Frio"
Trad. de José Bento
 É UM HOMEM. VAI SÓ PELO CAMPO.


É um homem. Vai só  pelo campo.
Escuta o seu coração, como bate,
e, de repente, o homem detém-se
e põe-se a chorar sobre a terra.

Juventude da dor. Cresce a seiva
verde e amarga da primavera.

Para o ocaso vai. Um pássaro
triste canta entre os ramos negros.

Já o homem apenas chora. Intriga-se
com o sabor a morto da sua língua.


Antonio Gamoneda
In " Oração Fria"
Trad. de João Moita.
 POEMA


O grande vento da noite
entra, lento, nos trigais.

Deixa a tua mão na minha
que são as nossas núpcias.

Tomo-te porque a minha pena
tem a cor dos teus olhos;

porque o meu pão é moreno
como a tua carne.



Antonio Gamoneda
Trad. de João Moita
PROMETEU NA FRONTEIRA

I

Talvez passemos pelo mesmo tormento.
Um deus caído na dor vale tanto
quando a dor se esta supera o pranto
e se levanta contra o firmamento.

Um deus imóvel é um deus sedento
e a mim cobrem-me com o mesmo manto.
Eu tenho sede e o que levanto
é a impotência de levantamento.

Oh que dura, feroz é a fronteira
da beleza e da dor; nem um Deus
pode cruzá-la com seu corpo puro.

Ambos estamos de igual maneira
a ferro e sede da solidão; os dois
acorrentados contra o mesmo muro.

II

E este dom de morrer, esta potência
degoladora da dor, de onde
nos vem? Em que deus se esconde
esta forma sinistra de clemência?

Uma única divina descendência
a esta zona de sombra corresponde.
Se falas a um deus, quando responde,
vem a morte por correspondência.

Se não fosse cobarde, se, mais forte,
num raio pudesse pela boca
expulsar este medo da morte,

como este imortal acorrentado
seria puro na dor. Oh, rocha,
meu mundo de sede, mundo olvidado



Antonio Gamoneda
In "Oração Fria"
Trad. de João Moita.

sábado, 18 de julho de 2015

EXISTIAM TUAS MÃOS

Um dia o mundo ficou em silêncio;
as árvores, acima, eram profundas e majestosas,
e nós sentimos sob nossa pele
o movimento da terra.

Tuas mãos foram suaves nas minhas
E eu senti a gravidade e a luz
E que vivias em meu coração.

Tudo era verdade sob as árvores,
tudo era verdade. Eu compreendia
todas as coisas como se compreende
um fruto com a boca, uma luz com os olhos.


Antonio Gamoneda
Trad. de Thiago Ponces de Moraes.
 POEMA


Consistência de fogo
sitiado pelo pranto.

Aquilo que primeiro se ama
são os olhos: porque incendeiam
com a sua luz a existência
reunida, olhando-se.

Mas a luz é uma causa
mortal. Ferido de transparência,
o meu coração oculta-se
e recolhe-se à beleza.


Antonio Gamoneda
Trad. de Alberto Soares

quarta-feira, 15 de julho de 2015

  HÁ CIDADES ACESAS.

Há cidades acesas na distância,
Magnéticas e fundas como luas,
Descampados em flor e negras ruas
Cheias de exaltação e ressonância.

Há cidades cujo lume
Destrói a insegurança dos meus passos,
E o anjo do real abre os seus braços
Em nardos que me matam de perfume.

E eu tenho de partir para saber
Quem sou, para saber qual é o nome
Do profundo existir que me consome
Neste país de névoa e de não ser.



Sophia de Mello Breyner Andresen
(1919-2004)
A CADA VERSO NASÇO...


A cada verso nasço...
É cada verso o meu primeiro grito
à vida...

Depois,
se caminho apalpando e aos tombos, e se, aflito,
não atino e me perco até de mim
-é que os raios do Sol cegaram, despiedados,
meus olhos mal abertos, costumados
à escuridão do ventre de onde vim.

Sebastião da Gama
(1924-1952)
in "Serra-Mãe"
Edição de Junho de 1957.

terça-feira, 14 de julho de 2015

CANSAÇO.

Não quero amar nem ser amado…
Quero ficar estúpido e cansado
A este canto, e só.

Batido pelo vento,
Sem conforto, sem pão, sem alegria.

E se eu chamar não venhas.
(Que eu não hei-de chamar-te…)

No entanto, Amor, não saias para longe.
É que eu posso, apesar de tudo quanto digo,
Chamar por ti.
E era tão bom saber que me escutavas!...
E era tão bom sentir que perdoavas!...

Sebastião da Gama
(1924-1952)
POÉTICA CONTRADITÓRIA.


Não digas o que sabes nos teus versos,
Deixa para trás a ciência e a consciência;
Tudo aquilo que em ti não for ausência
São ideais perdidos, ou submersos.

Abandona-te às vozes que não ouves,
E liberta os teus deuses nos teus dedos;
Não busques os sorrisos, mas os medos,
E o que não for ignoto e só, não louves.

Ser misterioso e triste, é ser poeta:
Mesmo a luz que palpita nos teus cantos.
É uma imagem heróica dos teus prantos.

Percorre o teu caminho até ao fundo,
E com os versos que achaste, aumenta o mundo.
Não sejas um escritor, mas um profeta.

António Quadros
(1923-1993)
 in, "Viagem Desconhecida"





ELEGIA PARA UMA GAIVOTA


Morreu no Mar a gaivota mais esbelta
A que morava mais alto e trespassava
De claridade as nuvens mais escuras com os olhos

Flutuam quietas, sobre as águas, suas asas
Água salgada, benta de tantas mortes angustiosas, aspergiu-a
E três pás de ar pesado para sempre as viagens lhe vedaram.

Eis que deixou de ser sonho apenas sonhado.
-: É finalmente sonho puro,
Sonho que sonha finalmente, asa que dorme voos

Cantos dos pescadores, embalai-a!
Versos dos poetas, embalai-a!
Brisas, peixes, marés, rumor de velas, embalai-a!

Há na manhã um gosto vago e doce de elegia,
Tão misteriosamente, tão insistentemente,
Sua presença morta em tudo se anuncia.

Ela vai, sereninha e muito branca.
E a sua morte simples e suavíssima
É a ordem-do-dia na praia e no mar alto.

Sebastião da Gama
(1924-1952)
 

segunda-feira, 13 de julho de 2015

APONTAMENTO


É tão bom
Sentir a ventania lá por fora
e a calma cá por dentro!...

Ou o contrário disto:
vento e raiva cá por dentro e, lá por fora, uma calma
que mais parece um gesto ou um olhar
de Cristo...

Ou, então,
chegar a esta confusão
de não saber se o vento é lá por fora
se é cá por dentro...

Sebastião da Gama
(1924-1952)
 MISTÉRIO LONGÍNQUO

Há dentro de mim um vazio que cresce,
como o crepúsculo comendo a pouco e pouco a terra.
Não sei o que se desmorona cada vez mais depressa
dentro de mim.
Não sei que ondas vão e vêm varrendo este mundo que fui,
alargando cada vez mais o espaço interior para outra coisa,
que não é nada aquela plenitude sonhada
dentro de mim.
De repente estou longe de tudo,
esquecido do sabor das coisas mais amadas,
com náuseas do que mais outrora amei
dentro de mim.
Dentro de mim... Este estribilho canta qualquer oculta praia
de oculto mundo. Qualquer sinal há nele, que não sei entender.
Dentro de mim, Senhor, dentro de mim quem terá morrido?
Vem nestas três palavras um dobre a finados
- dentro de mim, dentro de mim -
sobre alguém que ainda não sei que deixei de ser,
sobre aquele que finjo existir, talvez por piedade
- por mim? por quem?
-Mas o outro,
esse que já sou mesmo sem minha licença,
o outro que a vida pôs dentro de mim sem eu ter dado conta,
o outro, Senhor! - que fará ele de tudo o que não sei abandonar
dentro de mim?
Ao outro - quem o fará vencer
dentro de mim?


Adolfo Casais Monteiro
(1908-1972)
In "Poesias Completas"
Imprensa Nacional - Casa da Moeda
IDENTIDADE
 
 
Matei a lua e o luar difuso.
Quero os versos de ferro e de cimento.
E em vez de rimas, uso
As consonâncias que ha' no sofrimento.


Universal e aberto, o meu instinto acode
A todo o coração que se debate aflito.
E luta como sabe e como pode:
Da' beleza e sentido a cada grito.


Mas como as inscrições nas penedias
Tem maior duração,
Gasto as horas e os dias
A endurecer a forma da emoção.
 
 Miguel Torga
(1907-1995)

quinta-feira, 9 de julho de 2015

 

MINHA ALMA É UMA ORQUESTRA

Minha alma é uma orquestra oculta; não sei que instrumentos tange e range, cordas e harpas, tímbales e tambores, dentro de mim. Só me conheço como sinfonia.
Todo o esforço é um crime porque todo o gesto é um sonho inerte.
As tuas mãos são rolas presas.
Os teus lábios são rolas mudas.
(que aos meus olhos vêm arrulhar)
Todos os teus gestos são aves. És andorinha no abaixares-te, condor no olhares-me, águia nos teus êxtases de orgulhosa indiferente.
E toda ranger de asas, como dos (...), a lagoa de eu te ver. Tu és toda alada, toda (...)
Chove, chove, chove...
Chove constantemente, gemedoramente (...)
Meu corpo treme-me a alma de frio... Não um frio que há no espaço, mas um frio que há em vir a chuva...
Todo o prazer é um vício, porque buscar o prazer é o que todos fazem na vida, e o único vício negro é fazer o que toda a gente faz.

Bernardo Soares / Fernando Pessoa
(1888-1935)


quarta-feira, 8 de julho de 2015

     EPOPEIA


Não mais a África
da vida livre
e dos gritos agudos de azagaia!
Não mais a África
de rios tumultuosos

- veias entumecidas dum corpo de sangue!
Os brancos abriram clareiras
a tiros de carabina.
Nas clareiras fogos
roxeando a noite tropical
Fogos!
Milhões de fogos
num terreno em brasa!
Noite de grande lua
e um cântico subindo
do porão do navio.
O som das grilhetas
marcando o compasso!
Noite de grande lua
e destino ignorado!...
Foste o homem perdido
Em terras estranhas!...
No Brasil
ganhaste calo nas costas
nas vastas plantações do café!
No norte
foste o homem enrodilhado
nas vastas plantações de fumo!
Na calma do descanso nocturno
só saudade da terra
que ficou do outro lado...

- só canções bem soluçadas -

dum ritmo estranho!
Os homens do norte
ficaram rasgando
ventres e cavalos
aos homens do sul!
Os homens do norte
estavam cheios
dos ideais maiores
tão grandes
que tudo foi despropósito!...
Os homens do norte
os mais lúcidos e cheios de ideais
deram-te do que era teu
um pedaço para viveres...
Libéria! Libéria!
Ah!
Os homens nas ruas da Libéria
são dollars americanos
ritmicamente deslizando...
Quando cartas nos cabarés
Fazendo brilhar o marfim da tua boca
É a África que está chegando!
Quando nas Olimpíadas
Corres veloz
É a África que está chegando!
Segue em frente
irmão!
Que a tua música
seja o de uma conquista!
E que o teu ritmo
seja a cadência de uma via nova!
para que a tua gargalhada
de novo venha estralhaçar os ares
como gritos agudos e azagaia!


                                               Francisco José Tenreiro
                                               (1921-1963) 
PROMETEU

Abafai meus gritos com mordaças,
maior será a minha ânsia de gritá-los!

Amarrai meus pulsos com grilhões,
maior será minha ânsia de quebrá-los!

Rasgai a minha carne!
Triturai os meus ossos!

O meu sangue será a minha bandeira
e meus ossos o cimento duma outra humanidade.

Que aqui ninguém se entrega
- isto é vencer ou morrer -
é na vida que se perde
que há mais ânsia de viver!


Joaquim Namorado
(1914-1986)


NOSSA SENHORA DA APRESENTAÇÃO

O altar as vagas,
O dossel a espuma!
Missas rezadas pelo vento,
ora pelos fiéis defuntos que se foram
noutras vagas,
ora pelas barcaças que, uma a uma,
buscaram as sereias na distância
e se foram com elas.
Sobre o altar, entre círios, que não são
Os círios murchos das igrejas velhas
Mas os lumes das estrelas,
ELA,
Nossa Senhora da Apresentação.
aquela
que não tem mantos da cor do céu,
nem fios de oiro nos cabelos,
nem anéis nos dedos;
aquela
que não traz um menino nos seus braços
porque os seios mirraram
e já não têm pão para lhe dar;
aquela
que tem o corpo negro e sujo
e os ossos a saltar
da pele
e dos rasgões da saia e do corpete;
Nossa Senhora da Apresentação
da Beira-Mar,
que tem capelas
em cada peito de marinheiro,
que morre e, num instante,
se renova
e que anda
quer nos engaços do sargaceiro
ou nas gamelas do pilado
e palhabotes da Terra Nova.
Aquela
a quem todos adoram.
Dos meninos
feitos no intervalo das campanhas
aos bichanos que limpam de cabeças,
e tripas de pescado
as muralhas do cais.

O dossel a espuma.
O altar as vagas
─ e que altar enorme! ─
Entre círios de estrelas,
Nossa Senhora da Apresentação
e Justificação
─ a Fome!

Álvaro Feijó
(1916-1941)

domingo, 5 de julho de 2015

NAVEGA


Navega, descobre tesouros,
mas não os tires do fundo do mar,
o lugar deles é lá.
Admira a Lua,
sonha com ela,
mas não queiras trazê-la para Terra.
Goza a luz do Sol,
deixa-te acariciar por ele.
O calor é para todos.
Sonha com as estrelas,
apenas sonha,
elas só podem brilhar no céu.
Não tentes deter o vento,
ele precisa correr por toda a parte,
ele tem pressa de chegar sabe-se lá onde.
As lágrimas?
Não as seques,
elas precisam correr na minha, na tua, em todas as faces.
O sorriso!
Esse deves segurar,
não o deixes ir embora, agarra-o!
Quem amas?
Guarda dentro de um porta jóias, tranca, perde a chave!
Quem amas é a maior jóia que possuis, a mais valiosa.
Não importa se a estação do ano muda,
se o século vira, conserva a vontade de viver,
não se chega a parte alguma sem ela.
Abre todas as janelas que encontrares e as portas também.
Persegue o sonho, mas não o deixes viver sozinho.
Alimenta a tua alma com amor, cura as tuas feridas com carinho.
Descobre-te todos os dias,
deixa-te levar pelas tuas vontades,
mas não enlouqueças por elas.
Procura!
Procura sempre o fim de uma história,
seja ela qual for.
Dá um sorriso àqueles que esqueceram como se faz isso.
Olha para o lado, há alguém que precisa de ti.
Abastece o teu coração de fé, não a percas nunca.
Mergulha de cabeça nos teus desejos e satisfá-los.
Agoniza de dor por um amigo,
só sairás dessa agonia se conseguires tirá-lo também.
Procura os teus caminhos, mas não magoes ninguém nessa procura.
Arrepende-te, volta atrás,
pede perdão!
Não te acostumes com o que não te faz feliz,
revolta-te quando julgares necessário.
Enche o teu coração de esperança, mas não deixes que ele se afogue nela.
Se achares que precisas de voltar atrás, volta!
Se perceberes que precisas seguir, segue!
Se estiver tudo errado, começa novamente.
Se estiver tudo certo, continua.
Se sentires saudades, mata-as.
Se perderes um amor, não te percas!
Se o achares, segura-o!
Circunda-te de rosas, ama, bebe e cala.
"O mais é nada".


Fernando Pessoa
(1888-1935)
AQUELA SENHORA TEM UM PIANO.


Aquela Senhora tem um piano
Que é agradável mas não é o correr dos rios
Nem o murmúrio que as árvores fazem.

Para que é preciso ter um piano?
O melhor é ter ouvidos
E amar a natureza.


Alberto Caeiro / Fernando Pessoa
(1888-1935)

sábado, 4 de julho de 2015

 UMA GENTE



Uma gente em fuga de outra gente,
num país debaixo do sol
e de algumas nuvens.

Deixam para trás um tal seu tudo,
campos semeados, umas galinhas, cães,
espelhos, justamente nos quais o fogo se mira.

Levam às costas os cântaros e as trouxas,
quanto mais vazios mais pesados com o passar dos dias.

É em silêncio que alguém desfalece,
é na algazarra que alguém arranca o pão de alguém
e alguém sacode o filho morto.

Nunca é pela estrada que têm à frente,
nem é esta ponte
sob a qual passa um rio estranhamente avermelhado.
Em redor, disparos, ora longínquos ora próximos,
no alto, um avião errante rodopia.

Oportuna seria a invisibilidade,
uma parda rochosidade,
ou melhor a inexistência
durante um pouquinho ou por mais tempo.

Mais ainda está por acontecer, apenas onde eo quê.
 Alguém lhes sairá ao caminho, apenas quando e quem-
 de que forma e com que intenções.
Se puder escolher,
talvez não queira ser inimigo
e os deixe com alguma vida.

Wislawa Szymborska
(1923-2012) 
In "Instante"
 (Trad. Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves)

PERFILADOS DE MEDO


Perfilados de medo, agradecemos
o medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
e a vida sem viver é mais segura.

Aventureiros já sem aventura,
perfilados de medo combatemos
irónicos fantasmas à procura
do que não fomos, do que não seremos.

Perfilados de medo, sem mais voz,
o coração nos dentes oprimido,
os loucos, os fantasmas somos nós.

Rebanho pelo medo perseguido,
já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido...

Alexandre O'Neill
(1924-1986)