domingo, 30 de agosto de 2015

PORTUGAL SACRO-PROFANO LUGAR ONDE



Neste país sem olhos e sem boca 
hábito dos rios castanheiros costumados 
país palavra húmida e translúcida 
palavra tensa e densa com certa espessura 
(pátria de palavra apenas tem a superfície) 
os comboios mansos têm dorsos alvos 
engolem povoados limpamente 
tiram gente de aqui põem-na ali 
retalham os campos congregam-se 
dividem-se nas várias direcções 
e os homens dão-lhes boas digestões: 
cordeiros de metal ou talvez grilos 
que mãe aperta ao peito os filhos ao ouvi-los? 
Neste país do espaço raso do silêncio e solidão 
solidão da vidraça solidão da chuva 
país natal dos barcos e do mar 
do preto como cor profissional 
dos templos onde a devoção se multiplica em luzes 
do natal que há no mar da póvoa de varzim 
país do sino objecto inútil 
única coisa a mais sobre estes dias 
Aqui é que eu coisa feita de dias única razão 
vou polindo o poema sensação de segurança 
com saúde de um grito ao sol 
combalido tirito imito a dor 
de se poder estar só e haver casas 
cuidados mastigados coisas sérias 
o bafo sobre o aço como o vento na água 
País poema homem 
matéria para mais esquecimento 
do fundo deste dia solitário e triste 
após sucessivas quebras de calor 
antes da morte pequenina celular e muito pessoal 
natural como descer da camioneta ao fim da rua 
neste país sem olhos e sem boca
 
 
Ruy Belo
(1933-1978) 

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