sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

João Apolinário


OS POBRES TRABALHAM CEDO...


Os pobres trabalham cedo
cedo começam a vida.
Tudo neles é sempre cedo
Até a fome e a desgraça
uma estrela concebida
com duas chagas de medo
Abertas esponjas fundas
no corpo magro e doído
do homem desde criança
condenado a ser vendido
(pesado numa balança)
por qualquer preço colhido
na engrenagem ou na teia
duma aranha gigantesca
que entre ventres de lua cheia
(ainda no sangue) os pesca
os domina suga enreda
em meandros duma trama
que cobre a cidade toda

Esta cidade que acorda
na marmita dum rapaz
com doze anos apenas
e poucas horas de sono
caminhando para a luta
dos olhos do capataz
que faz as vezes do dono
Esta cidade que acorda
molhada triste dormente
e que em vez de algum bombom
no ventre daquele menino
(com doze anos apenas
e poucas horas de sono)
lhe amassa o pão numa açorda
que a própria fome da mãe
(a insónia do pão duro)
dá ao filho porque o dono
lhe marca bem o futuro

São quatro escudos que ganha
esta vítima da aranha

João Apolinário
(1924-1988)
In "O Guardador de Automóveis"

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