TU, PIEDADE
Tu, piedade,
que vens lá do fundo
da raiz do instinto
e és capaz de incendiar o mundo
para aquecer um faminto.
Tu que me embalas
com a voz rouca
da cólera do amor
que deixa na boca
o frio das balas
e todo o amargor
da outra sede
que só se sufoca
com pus e suor
- e os dedos sangrentos
na cal da parede
dos fuzilamentos.
Tu que me afagas
como quem estrangula
com mãos de bandido...
E beijas as chagas
com lábios de gula
e chumbo derretido.
Tu que só amas
a dor com esgares,
nos gritos das chamas,
nas cordas dos potros,
na cruz do Rabi
- para assim chorares,
através dos outros,
o que dói em ti.
Tu que me levas
de rastos na estrada
ao fundo da rampa
onde só há trevas
- raiz misturada
de estrelas e trampa.
Tu que descobres
toda a secura
de cinzas nos frutos
que há na ternura
de chorar os pobres
de olhos enxutos.
Tu, piedade,
mãe de todas as mães
e de todos os vícios,
que lambes como os cães
os vergões dos cilícios.
Dá-me lágrimas reais
na cara a correr
como se a pele sangrasse...
Dessas que deixam sinais
e fazem doer
por dentro da face.
Dá-me lágrimas geladas
como dedos nos gatilhos
em noites de lobos...
Que eu quero baptizar com elas
todos os filhos
da fúria das cadelas,
dos réprobos e das ladras,
de estupros e de roubos.
Dá-me o ódio frio
que vem lá do fundo
do bafio das prisões
- ódio que há-de salvar o mundo,
num dia de lágrimas nos olhos,
quentes como corações.
José Gomes Ferreira, 1945 - "Poesia III",1961
(1900-1985)
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