domingo, 13 de março de 2011

José Gomes Ferreira


XXVI

(Derrocada.)

Vale-me orgulho,
ou lá o que és
deste chão peninsular
- e ata-me aos pés
o pedregulho
dos cadáveres hirtos lançados ao mar.

Vem com mãos de metal
endireitar-me a espinha
e ordena que se cale
esta voz a chorar dentro da minha.

Ergue-me da lama onde o o céu atola
os corações dos sapos caídos da lua
e leva-me pela gola
de rua em rua.

Abre
na súplica deste meu olhar de desprezo
um clarão de desafio de sabre
ao mundo em peso.

E dá-me depois um destino de asas pretas
à sombra dos meus passos
- cabeça erguida, a atirar planetas
para os espaços.

Eu, o poeta militante,
que por ódio à dor que se mascara
desci do meu mirante
e vim para a rua de lágrimas na cara.

Não lágrimas de mãos postas
ao luar gemebundo
(a fingir que trago às costas
a dor do mundo)...

...Mas estas - vede -
lágrimas de cicatriz
que correm no sangue da sede
dos homens viris.

Lágrimas que só ostento
para as guardar secretas
(o eterno tormento
de todos os poetas).

Ah! mas que nenhum Sonho, nenhuma Voz me embale
- nem a tua, orgulho, que possuis
a limpidez dum punhal
em mãos azuis.

Não me tragas penugens de regaços
quando me deito,
nem me leves nos braços
para outro leito.

Não me persuadas
do que há nos meus versos palavras de magia
que vão à frente, das lâmpadas atadas,
a iluminarem a morte que nos guia.

Nem me iludas de que posso transformar a Terra
e arrancar os mortos das mortalhas
com os meus versos de tremor de terra
- afinal pássaros de nuvens a cantar nas muralhas,

Não, orgulho. Dá-me apenas esta lâmina de olhos nus
com lágrimas por dentro a rasgarem a realidade
- para poderem ver bem o fel, o suor, o pus
e a solidão da Verdade.

Agora só estes cães nos olhos de quem rilha
o último osso do amor caído de outra mesa...

(Mas ai também de quem é puro
por viver numa ilha
cercada por um muro!
- a pensar na impureza.)

José Gomes Ferreira
(1900-1985)
In "Poesia III"

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