sábado, 18 de setembro de 2010

Jacques Brel


JACQUES BREL / JOANNE ESNER:


Disseram-me Brel-gica. Disseram-me Brel alegre, Brel triste, Brel louco, Brel doente.
Disseram-me das suas noites em claro a contar histórias sem fim, das suas canecas de cerveja que cobriam mesas, da suas tournées por estradas cobertas de gelo, sempre sozinho ao volante a percorrer as Ardenas, como aposta, como teimosia e na insistência ao mergulhar dez ou onze vezes, de fato e gravata, nas águas geladas do Zoute, às cinco da manhã de um dia para liquidar Frantz.

Disseram-me que Brel era um homem da noite e homem do dia, que era famélico e de paladar requintado, que todas as manhãs sofria ao espelho e se tornava belo sob a luz violenta dos projectores do Olympia.

Disseram-me que ele sabia pilotar Boeings, até mesmo os 747, e que vomitava sempre antes de entrar no palco. Sempre, sem excepção.

Disseram-me que as suas paisagens eram feitas das águas cinzentas e moribundas do Inverno, mas que necessitava de sol, dos trópicos, das tórridas ilhas Marquesas para viver, para respirar.

Disseram-me que ele não gostava muito das mulheres, mas que para elas tinha descoberto pérolas de chuva vindas de países onde nunca chove.

Disseram-me que cedo tinha cortado relações com a família e que os primeiros dinheiros que ganhou serviram para comprar uma máquina americana para a fábrica do pai.

Disseram-me que era um mão-rotas, mas que a sua mulher geria em seu nome os bens, os seus poemas, os seus tesouros.

Eu só conhecia o eremita selvagem, inimigo da imprensa, sem concessóes, e falaram-me de noites de farra em que ele foi o animador.
Esse misantropo, esse marginal forte, puro e duro pagou do seu bolso três curas de desintoxicação a um judeu louco que encontrou por acaso e que, um belo dia lhe pediu dinheiro.
Era o blasfemo, o excomungado, que foi amigo toda a vida de um padre a sério, que ele visitava a cada regresso.

Disseram-me que era feio, desajeitado de corpo e, no entanto, mulheres muito belas o quiseram, o perseguiram, o conquistaram.

Quando partiu para viver longe de todios, a trinta e cinco horas de voo da Europa, a oito dias de viagem de Paris (contando as esperas), Brel escrevia num postal endereçado ao seu amigo de infância Frantz: "Até já".

Disseram-me que ele tinha passado noites inteiras numa salinha das traseiras de um cabaret à espera de poder rever alguns amigos, ele, o puro-sangue impaciente perante os minutos, os dias, o tempo, sempre apressado, sempre demasiado apressado.

Falaram-me de um homem com uma tão grande pressa de viver e de outro, o mesmo, que sabia esperar anos e anos para ser oportuno.

Disseram-me que a sua vida eram só vitórias, que o sucesso lhe sorria em todas as suas iniciativas, ele que só contava o insucesso, o desespero apreendido de cor, ou desaprendido, o desespero, que volta sempre. Foram vitórias, sem dúvida.
Excepto Le Far West. E também me falaram de Le Far West .

Disseram-me que o cancro começou no fim das filmagens. Que ele sabia. Que ele se estava nas tintas, dado que ainda havia submarinos que ele não conhecia, e vinte mil léguas submarinas e montes de estrelas na Via Láctea e coragem, Brel, coragem e quantas coisas mais?

Tanto me disseram, o Frantz, o Pierre, o Jacques, o Edouard, o Henri, a Zozo, o Janou, tanto, que a certa altura eu perguntei a mim mesmo como é que era Jacques Brel. Mas o personagem que eles não desvendavam não o conseguia eu fixar, como num sonho triste em que uma cara se aproxima e se transforma em porcelana. E, um dia, mesmo antes da minha partida, um amigo dele mostrou-me um filme que tinha uma antiga entrevista de Brel. Três horas de entrevista, em que ele fala da sua vida, das pessoas e das coisas que ama.

E, a um dado momento, em resposta a uma pergunta relativa à sua profissão, Brel diz muito depressa uma frase, e foi essa a única que me ficou na memória, talvez po causa da veemência com que ele disse: "É preciso enganarmo-nos, é preciso ser imprudente, é preciso ser louco. De outro modo não passamos de diminuídos."

Joanne Esner

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