PREÇO DA VERDADE
No antigo sótão da memória poída,
por trás da colher de pau carunchosa,
sob a roupa velha há-de encontrar-se, ou junto ao muro
carcomido, na poeira
de séculos. Há-de encontrar-se talvez para lá do pálido gesto da mão
velha de algum mendigo, ou na ruína da alma
quando tudo cessou.
Pergunto a mim próprio se é preciso o caminho
poeirento da dúvida tenaz, o desalento súbito
na planície estéril, sob o sol da justiça,
a ruína de toda a esperança, o farrapo coçado do medo, a angústia invencível
[a meio do carreiro que conduz ao torreão desmoronado.
Pergunto a mim próprio se é preciso deixar o caminho real
e meter à esquerda pelo atalho e a vereda,
como se nada tivesse ficado para trás na casa deserta.
Pergunto a mim próprio se é preciso ir sem vacilar até ao horror da noite,
penetrar no abismo, na boca do lobo,
caminhar para trás, de costas para a negação,
ou inverter a verdade, no desolado caminho.
Ou se antes é preciso o soluço de pó na confusão de um verão
terrível, ou no transtornado amanhecer do álcool com trombetas de sonho
saber-se de súbito absolutamente desertos, ou melhor,
é talvez necessário ter-se perdido no sórdido pacto do amor,
ter contratado na sombra uma ilusão,
comprado por dinheiro uma reminiscência de luz, um encanto
de amanhecer por trás da colina, junto ao rio.
Admito a possibilidade de ser absolutamente necessário
ter descido, ao menos uma vez, até ao fundo do edifício escuro,
ter descido, tacteando, o perigo da escada a desfazer-se, que ameaça ceder
[a cada um dos nossos passos,
e ter penetrado por fim com valentia na indignidade, na cave escura.
Ter visitado o lugar da sombra,
o território da cinza, onde a vileza repousa
junto à teia de aranha paciente. Ter-se instalado o pó,
tê-lo mastigado com tenacidade em longas horas de sede
ou de sono. Ter correspondido com coragem ou ousadia
ao silêncio
ou à pergunta derradeira e ter-se ali fortalecido e acautelado.
É preciso ter-se entendido com a verdade criminosa
que nos assalta em plena noite, nos tira o sono e rouba
até ao último centavo. Ter mendigado longos dias depois
pelos bairros mais miseráveis de cada um, sem esperança de recuperar
[o perdido,
e por fim, espoliados, ter continuado o caminho sincero e entrado na
[noite absoluta com coragem ainda.
Carlos Bousoño (1923)
In "Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea"
Trad. de José Bento.
Sem comentários:
Enviar um comentário