DEPOIS DE MIM
Um dia (sei-o bem)
os campos ficarão eternamente floridos
e a chaga que me inquieta
deixará de sangrar em todos os peitos.
Os homens já não estarão curvados sobre as terras.
E a leiteira não virá mais trazer-me as bilhas com seu ar de humildade.
A mulher dos ovos e o homem da fruta,
o rapaz pobre envergonhado de dizer: eu sei,
o camponês prestando contas da estação,
os vultos negros do subsolo,
a linda mãe solteira,
deixarão de sorrir com humildade.
Humildade ficará nos dicionários como esqueleto em museu arqueológico.
Eu próprio nunca mais farei baixar as pálpebras
e deixarei que o sol me inunde bem nos olhos.
Um dia
(ah sinto-o bem para além das milhentas folhas de todos os tratados).
uma onda de amor invadirá tudo e todos.
E será uma primavera diferente de todas as primaveras
porque ainda não foram inventadas as palavras para exprimi-la.
Simplesmente, nesse dia primeiro da nova criação, eu já terei partido.
Minha carne estará funda de mais para sentir o beliscão da alegria.
E os olhos cheios de terra
não verão os campos levantados
nem os campos eternamente floridos
nem a leiteira sem o seu ar de humildade
Porém, que importa?
Um dia, sei-o bem, todos estarão até-que-enfim de acordo.
Que importa a minha ausência?
Que importa que eu não venha a saborear os frutos da própria árvore?
Que é isso -
ao pé da inabalável certeza desse dia admirável?
Março de 1938.
Mário Dionísio
(1916-1993)
in "A Poesia da Presença"
Sem comentários:
Enviar um comentário