segunda-feira, 9 de novembro de 2015

 AS PALAVRAS

Quebram as palavras o cristal.
Quebram as palavras,
com as suas asas brandas
de delicada ave,
a dureza rude das montanhas.
Quebram as palavras até
os varões de ferro das prisões.
De palavras contra palavras,
às vezes saltam mais violentas chispas,
de irredutível inimizade carregadas,
que do próprio entrechocar
feroz das armas sem perdão,
como, pelo contrário, podem
subitamente florir
incontíveis simpatias,
fulminantes paixões,
avassaladores desejos de mútua posse.

Palavras incendeiam
um entusiasmo, ou o mundo.
Palavras elucidam,
medem, ou tranquilizam,
ou, antes, obscurecem,
confundem, ou perturbam.
Palavras acarinham, consolam, vivificam,
ou magoam, ou ferem, ou são mesmo mortais.
Palavras fazem rir,
ou desencadeiam rios
de comovido pranto.
Palavras são a face mais expressiva das coisas.
Palavras são as coisas na sua abstracção.

Nunca palavras foram, como as que confiei
à mulher que é minha, à mulher de quem sou,
nem palavras tão claras, nem palavras tão negras,
das nossas alegrias,
das nossas apreensões,
nem palavras tão ágeis
de frágil devaneio,
nem palavras tão densas, na sua precisão,
dos sérios pensamentos, ou das decisões graves,
nem palavras tão fundas,
como fundas raízes,
nem palavras apenas balbuciadas de leve,
nem, inclusivamente, palavras só pensadas,
por inutilidade de as dizermos sequer,
expressas e entendidas
num nosso mero olhar.

Às palavras as deixo
discorrer, e são fontes,
ou o vento soprando.
Às palavras as moldo entre os dedos nervosos.
Às palavras as talho na bruteza da pedra,
que desbasto, afeiçoo, amacio e insuflo,
a pouco e pouco dela arrancando o que esconde.
Às palavras as mordo.
Às palavras as rasgo.
Às palavras abraço e as vergo ao meu gosto,
ao meu puro capricho, à minha decisão.
Às palavras as lanço pelo ar como dardos.
Às palavras as espalho, como à roda sementes.
Às palavras as colho, como frutos maduros.
Às palavras as prezo.
Às palavras as peso.
As palavras me doem.
De palavras me nutro.

Palavras que na sua variedade
outras defrontam, negam, desafiam,
ou nelas se completam, ou delas se iluminam,
assim a realidade comentando,
assim a realidade recriando,
melhor no-la revelam,
mais inteira e subtil.

Palavras se debruçam
de outras, misteriosas,
e são assombro, ou medo.
Palavras se interrogam e respondem,
interrogações novas levantando,
com o que o jogo intérmino prossegue,
e em seu orgulho,
humílimo afinal,
são a sabedoria.
Palavras ofegantes, mas serenas,
se esancaram,
ensanguentadas do incessante parto,
do mais alto esplendor do sol ardendo,
da mais vasta planície rodeadas,
e são a liberdadde.

Às palavras me imponho,
como delas sou escravo.
Às palavras me humilho,
como delas me ufano.
Em palavras me enredo.
Por palavras me evado.

Às palavras as escolho,
meticulosamente,
e amoroso as alinho para as pôr a cantar.
Cantai, minhas palavras.
Canta, minha canção.

Armindo Rodrigues
(1904-1993)


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