Fui Traído pela memória... René Assumpção morreu a 8 de Janeiro de 2001. Em sua memória aqui fica um texto seu publicado no "Notícias de Ourém". Texto recuperado das cinzas,ainda quentes, do "Som da Tinta" e ai colocado por Sérgio Ribeiro. Até Sempre René.
Era Domingo e chovia.
As minhas desculpas ao distinto escritor e diplomata Dário Castro Alves por lhe ter roubado a ideia para titular esta crónica.
As minhas desculpas também aos meus leitores porque esta crónica vos falará... de quase coisa nenhuma.
Mas como ia dizendo, era Domingo e chovia. Preparando-se para o almoço, reuniam-se os convivas.
Um jovem, dois homens fortes (a palavra gorda incomoda-me) e um outro, que além de ser magro e usar barbas, era o dono da casa. Mulheres também as havia: uma arquitecta, que se espera venha a desempenhar papel relevante na história, e duas outras simpáticas convidadas.
A dona da casa, essa relampejava entre as panelas e a sala.
Sobre a mesa cintilava uma esplendorosa natureza morta, feita de pão de milho, queijo, rodelinhas de chouriço a azeitonas.
Assim a conversa decorria serena, fluída, quase líquida, já que um bom vinho de Pinhel, apesar de velho de alguns anos, mostrava sã e robusta compleição
Um dos presentes é infatigável viajante das palavras e das canções e, como os outros, viajantes interessados de países, de cultura e de gentes.
Não custa pois imaginar que de tudo se falasse. De gastronomia, pois claro, momento em que se produziu a mais espantosa declaração do dia e cuja reprodução como forma de obrigar o leitor a ler-me todo, guardei para o fim.
Mas também doutras culturas, do livro, da pintura, da música.
Entretanto aproveito para dizer que tinham já chegado estaladiças chamussas, enquanto da cozinha vinha um cheiro intenso, longínquo, oriental, de algo verdadeiramente exótico.
Atento - embora com uma parcimónia que me pareceu exagerada - o anfitrião ia servindo o tal vinho e a conversa não abrandou nem sequer quando foi servido o mítico sarapatel, prato com sabores do Índico
Nesse ponto já se chegara à inabalável convicção que era necessário inventar, desenhar, concretizar um espaço de encontro em Ourém.
Um espaço onde o livro fosse rei, mas onde a música, a pintura, a palavra, tivessem sempre lugar.
Um espaço pequeno mas ilimitável na sua função de criar convívio, estimular a troca de ideias, promover o gosto pelo livro a pela cultura em geral e onde, de vez em quando, aportasse um convidado, ilustre ou menos ilustre, que com os ourienses debatesse os mais variados assuntos.
E quando chegou a bebinca, finíssima sobremesa que Vasco da Gama, aportado em Melinde, provou e considerou - assim rezam crónicas antiquíssimas - mais preciosa que a noz moscada, a pimenta, e a canela que tão arduamente demandara, o projecto estava consolidado.
Determinara-se o local, relacionara-se os nomes, fixara-se as linhas orientadoras do projecto. Em breve Ourém irá ter um lugar diferente de encontro.
Lá fora chovia ainda e era Domingo, embora para todos nós aquele fosse um dia de sol e de esperança que inundasse toda a quadra onde nos encontrávamos.
Suspirámos fundo e lembrei-me então da frase mais relevante do dia, dita por um enciclopédico conhecedor de culinária, seguro e inabalável:
- Gosto do bicho da cereja, sabe a cereja.
Com homens como este, quem tem medo de embarcar em aventuras?
E pronto, amigo leitor. Dar-lhe-ei por certo mais notícias desta iniciativa.
Até à próxima se não for antes.
René Assumpção
segunda-feira, 11 de janeiro de 2010
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Amigo,
ResponderEliminartenho de tirar os óculos e de passsar as costas das mãos pelos olhos, depois de ler a tua mensagem.
O René! A falta que ele nos fez, a falta que ele nos faz. E a memória que nos trai, como tanto que nos vai corroendo.
Esse almoço foi tão importante. Tão decisivo para o curto futuro, para as esperanças que logo começaram a fenecer com a sua morte... e outras coisas.
Foi tão bonito o projecto e o que ele conseguiu. E tanto se deve ao René!
Obrigado, amigo, muito obrigado por esta mensagem. De lembrança, de fidelidade (o contrário da traição, de solidariedade. Soube tão bem, fazendo tanto mal.
Um grande abraço
O René, o seu espírito, o seu sentido de humor repentino, na hora certa, a disponibilidade com que convivia, o que escreveu...e tantas coisas que os que o conheceram não vão esquecer!
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