sexta-feira, 19 de abril de 2013

SERENIDADE


Quando ponho os olhos nas coisas,
quando a mim mesmo me  observo,
não é uma paz impossível que procuro,
mas a explicação universal de cada tumulto,
o repouso, na ferocidade inconsciente do mundo,
desta aspiração que me queima
de uma impossibilidade que nunca poderei sentir.

Odeio e amo com a mesma naturalidade
com que as pedras caem para baixo
e não para cima,
com que cada vida caminha para a morte
e indiferentes à morte outras vidas começam
para caminharem para a morte por sua vez.

Odeio e amo e ainda bem
que não sou capaz só de amor ou só de ódio,
que não me deixariam ver o aspecto verdadeiro
de uma natureza caótica que não escolhi
mas é a única
 em que a minha vida fugaz decorre.

Ainda bem que sou capaz de analisar  tudo
e a desordem da vida me agrada
mesmo quando, por mais esforços que faça,
não vislumbro nela
 nem uma imitação de harmonia.

Assim, a compreensão de cada tragédia,
de cada riso,
de cada monstruosidade,
de cada pavor,
não são para mim uma simples curiosidade,
nem um abismo de que me debruço perversamente,
mas apenas uma necessidade
que a minha presença me impõe,
idêntica à de beber água quanto tenho sede.

Bem vejo que a vida é breve e quando se se chega
ao fim e se repara nos erros cometidos,
já não há remédio senão cruzar os braços,
porque o passado ficou irremediàvelmente  para trás.

Bem vejo que a vida é uma aventura
que maior parte das vezes só traz
desilusões, lágrimas, perplexidades.
Mas é a única oportunidade
que cada um de nós tem
no imenso desdobrar dos séculos implacáveis.



Não serve para nada para além de nós.
Mas visto que é assim
e não pode ser de outro modo,
ainda mais alegremente atiro
a minha voz para o fragor
das  outras vozes e das tempestades,
e quero que o mundo pareça cada vez mais amplo
 e cada vez mais claro a todos os olhos.

Toda a experiência feita de suor, de lágrimas,
de combates perdidos, de rumos errados,
que cada um acumula no decurso da vida,
cada um a perde no mesmo tempo
que a última palavra lhe cai dos lábios
como um fruto bichoso que o vento arranca.
Mas o mundo persiste e nele fica
mais uma certeza para os outros homens.

E o amor intenso de uma nitidez cada vez maior,
a curiosidade dos horizonte fechados ainda,
a exaltação das mãos estendidas
fraternalmente umas para as outras,
o ódio feroz da injustiça,
continuam a arder nos corações,
com a mesma inutilidade cósmica,
mas com o mesmo entusiasmo que faz
de cada momento uma eternidade.

Armindo Rodrigues
(1904-1993)
In "A Esperança Desesperada"
Edição do autor. Coimbra 1948.






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