sábado, 29 de janeiro de 2011

Rui Knopfli


SE


Se, porventura,
a qualquer ponto do caminho
te surgir o instante de loucura
através do qual te possas libertar
num maravilhoso exercício de alegria
e exaltação

e tu resistas e renuncies

(é preciso, é preciso
aprender a não viver).

Se, casado
e rodeado de filhos,
souberes renunciar ao amor e à aventura
e manter a estabilidade
perante a solicitação de fugires
com a mulher do teu melhor amigo,
ou a extorquires com dor,
a puta ao chulo,
num tinir de copos e móveis partidos
pelo chão do cabaret.

Se, contabilista,
resistires à falsificação da escrita
à tentação da «caixa»;
se, empregado,
souberes oferecer ao patrão
o sorriso e a vénia modelares,
em vez do gesto indecente, descarado,
do gesto português

(é preciso, é preciso
aprender a não viver).

Se, perante o absinto,
o brandy, o gin com água tónica,
o uísque ou a mera aguardente de cana,
optares
pela moderação de um drink ocasional,
numa situação excepcional.

Se, à aventura e ao risco,
opuseres o sossego e a rotina,
se te souberes afeiçoar
à norma certinha, à teia
das relações familiares, sociais,
políticas e administrativas
num respeito deferente
para com a ordem estabelecida
e, ao próprio verso
- ainda uma ilusão de liberdade,
um exercício de íntima alegria
- responderes
com as formas prosaicas convenientes,

então, meu filho, serás um homem
geralmente respeitado e admirado
pelos teus concidadãos.

Entretanto, formulo um obscuro voto
para que, nalguma destas alternativas,
te percas, meu filho, sem remissão.

Rui Knopfli, Memória Consentida,
(1932-1997)

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