Todos têm para mim o desprezo dos fortes, todos têm para mim o desprezo dos que encontram na vida um caminho - que muitas vezes não encontraram mas julgaram encontrar.
Caminho que pode ser o seu mas é um caminho...
Eu continuarei a perder-me nos horizontes largos, a andar às cegas entre o mal e o bem...
que a minha terra é Terra de Ninguém.
João José Cochofel (1919-1982)
AFINAL A VIDA.
Afinal a vida é este roer de cardos velhos, é este deitar-se na palha podre, é este andar aos tombos pelas ruas: ver os outros a rir e a chorar - e chorar também para que os outros riam, e rir também para que os outros chorem. A vida é isto, e não o que eu sonhei.
Raios partam a vida tal como ela é.
João José Cochofel (1919-1982)
segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014
LASSO, TRISTE, VENHO
Lasso, triste, venho do silêncio em mim. Que escuro o caminho! Que longe do fim!
Indeciso ainda como um cristal baço; mas que fome existe já no meu cansaço!
Olho-me por dentro: que frio, sozinho! Aqueço-me ao fogo do comum destino.
João José Cochofel (1919-1982) In "Os Dias Íntimos"
QUE SENSIBILIDADE.
Que sensibilidade me sobe da passada adolescência? Que agudeza dos sentidos me perturba a consciência?
Surge do desencanto um mundo a que me abandono. Tranquilo e caricioso como um sol de Outono.
A cor, a luz, as formas, sinto-as de coração novo! Em tudo desconheço uma experiência que renovo.
Como quem sai duma longa doença, deslumbrado e comovido pela convalescença.
João José Cochofel (1919-1982) In "Os Dias Íntimos"
FAZE QUE A TUA VIDA SEJA O QUE TE NEGA.
Faze que a tua vida seja o que te nega. A luta é tua: fá-la. Agora, os sonhos em farrapos, melhor é a luta que pensá-la.
Ergue com o vigor do teu pulso; solda-o em aço. E da tua obra afirma. – Sou o que faço.
João José Cochofel (1919-1982)
ÂNSIA QUE SÓ TEM
Ânsia que só tem o limite do sonho. De tudo me vem a dor que nela ponho.
Uma dor de esperança que teima em romper deste chão de raiva que nos dão pra viver.
Mas que queremos arar de flores e de frutos. Oculte a seara o campo de lutos.
João José Cochofel (1919-1982)
VERDE E FRESCA
Verde e fresca te queria. Mais urgente o pão de cada dia.
Verde e fresca te queria, sem esse açoutado do olhar. Mundo!, aos pobres que outra coisa hás-de dar?
Verde e fresca te queria, como desabrochaste outrora. Tanta a diferença a separar-te de agora!
Corpo murchando no alvorecer da vida: verde e fresca te queria.
Penosa é a lida a quem dá a si próprio o pão de cada dia.
João José Cochofel (1919-1982)
A MINHA VIDA É...
A minha vida é como um certo corredor sombrio de tecto baixo e lúgubre dos lados com inúmeras portas mas fechadas e só lá muito ao fundo se divisa se é que se divisa uma janela que nos promete árvores e relva e um mundo de verdura que perdi
Ruy Belo (1933-1978)
sábado, 8 de fevereiro de 2014
TALVEZ.
Talvez digas um dia o que me queres, Talvez não queiras afinal dizê-lo, Talvez passes a mão no meu cabelo, Talvez eu pense em ti talvez me esperes.
Talvez, sendo isto assim, fosse melhor Falhar-se o nosso encontro por um triz Talvez não me afagasses como eu quis, Talvez não nos soubéssemos de cor.
Mas não sei bem, respostas não mas dês. Vivo só de murmúrios repetidos, De enganos de alma e fome dos sentidos, Talvez seja cruel, talvez, talvez.
Se nada dás, porém, nada te dou Neste vaivém que sempre nos sustenta, E se a própria saudade nos inventa, Não sei talvez quem és mas sei quem sou.
Vasco GRAÇA MOURA
sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014
BEM SEI QUE ESTOU ENDOIDECENDO
Bem sei que estou endoidecendo. Bem sei que falha em mim quem sou. Sim, mas, enquanto me não rendo, Quero saber por onde vou.
Inda que vá para render-me Ao que o Destino me faz ser, Quero, um momento, aqui deter-me E descansar a conhecer.
Há grandes lapsos de memória Grandes paralelas perdidas, E muita lenda e muita história E muitas vidas, muitas vidas.
Tudo isso; agora me perco De mim e vou a transviar, Quero chamar a mim, e cerco Meu ser de tudo relembrar.
Porque, se vou ser louco, quero Ser louco com moral e siso. Vou tanger lira como Nero. Mas o incêndio não é preciso.
Fernando PESSOA (1888-1935)
segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014
SEI QUE O ÚNICO CANTO
Sei que o único canto, o único digno dos cantos antigos, a única poesia, é a que cala e ainda ama este mundo, esta solidão que enlouquece e despoja.
Antonio Gamoneda In "Oração Fria" Trad. de João Moita
domingo, 2 de fevereiro de 2014
ULISSES
O mito é o nada que é tudo. O mesmo sol que abre os céus É um mito brilhante e mudo - O corpo morto de Deus, Vivo e desnudo.
Este, que aqui aportou, Foi por não ser existindo. Sem existir nos bastou. Por não ter vindo foi vindo E nos criou.
Assim a lenda se escorre A entrar na realidade, E a fecundá-la decorre. Em baixo, a vida, metade De nada, morre.
FERNANDO PESSOA (1888-1935) In "Mensagem"
VERDADE.
Nas tuas mãos autênticas, tamanhas Que nelas cabe o mundo! ainda acredito Que sejam altas, firmes, as montanhas E puras as nascentes de granito.
O mais só nos enterra e só nos mente. Que importa o azul do céu e o azul das águas? O que eu procuro é gente Que sinta o meu amor e as minhas mágoas!