quarta-feira, 1 de maio de 2013

Cristalizações



   


Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiros,
 Vibra uma imensa claridade crua.
 De cócoras, em linha, os calceteiros,
 Com lentidão, terrosos e grosseiros,
 Calçam de lado a lado a longa rua.

Com as elevações secaram do relento,
 E o descoberto sol abafa e cria!
 A frialdade exige o movimento;
 E as poças de água, como em chão vidrento,
 Reflectem a molhada casaria.

Em pé e perna, dando aos rins que a marcha agita,
 Disseminadas, gritam as peixeiras;
 Luzem, aquecem na manhã bonita,
 Uns barracões de gente pobrezita
 E uns quintalórios velhos com parreiras.

Não se ouvem as aves; nem o choro duma nora!
 Tomam por outra parte os viandantes;
 E o ferro e a pedra - que união sonora! -
 Retinem alto pelo espaço fora,
 Com choques rijos, ásperos, cantantes.

Bom tempo. E os rapagões, morosos, duros, baços,
 Cuja coluna nunca se endireita,
 Partem penedos; cruzam-se estilhaços.
 Pesam enormemente os grossos maços,
 Com que outros batem a calçada feita.

A sua barba agreste! A lã dos seus barretes!
 Que espessos forros! Numa das regueiras
 Acamam-se as japonas, os coletes;
 E eles descalçam com os picaretes,
 Que ferem lume sobre sobre pederneiras.

E nesse rude mês, que não consente as flores,
 Fundeiam, como a esquadra em fria paz,
 As árvores despidas. Sóbrias cores!
 Mastros, enxárcias, vergas! Valadores
 Atiram terra com as largas pás.

Eu julgo-me no Norte, ao frio - o grande agente! -
 Carros de mão, que chiam carregados,
 Conduzem saibro, vagarosamente;
 Vê-se a cidade, mercantil, contente:
 Madeiras, águas, multidões, telhados!

Negrejam os quintais, enxuga a alvenaria;
 Em arco, sem as nuvens flutuantes,
 O céu renova a tinta corredia;
 E os charcos brilham tanto, que eu diria
 Ter ante mim lagoas de brilhantes!

E engelhem, muito embora, os fracos, os tolhidos,
 Eu tudo encontro alegremente exacto.
 Lavo, refresco, limpo os meus sentidos.
 E tangem-me, excitados, sacudidos,
 O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto!

Pede-me o corpo inteiro esforços na friagem
 De tão lavada e igual temperatura!
 Os ares, o caminho, a luz reagem;
 Cheira-me a fogo, a sílex, a ferrugem;
 Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura.

Mal encarado e negro, um pára enquanto eu passo;
 Dois assobiam, altas as marretas
 Possantes, grossas, temperadas de aço;
 E um gordo, o mestre, com um ar ralaço
 E manso, tira o nível das valetas.

Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas!
 Que vida tão custosa! Que diabo!
 E os cavadores pousam as enxadas,
 E cospem nas calosas mãos gretadas,
 Para que não lhes escorregue o cabo.

Povo! No pano cru rasgado das camisas
 Uma bandeira penso que transluz!
 Com ela sofres, bebes, agonizas:
 Listrões de vinho lançam-lhe divisas,
 E os suspensórios traçam-lhe uma cruz!

De escuro, bruscamente, ao cimo da barroca,
 Surge um perfil direito que se aguça;
 E ar matinal de quem saiu da toca,
 Uma figura fina, desemboca,
 Toda abafada num casaco à russa.

Donde ela vem! A actriz que tanto cumprimento
 E a quem, à noite na plateia, atraio
 Os olhos lisos como polimento!
 Com seu rostinho estreito, friorento,
 Caminha agora para o seu ensaio.

E aos outros eu admiro os dorsos, os costados
 Como lajões. Os bons trabalhadores!
 Os filhos das lezírias, dos montados:
 Os das planícies, altos, aprumados;
 Os das montanhas, baixos, trepadores!

Mas fina de feições, o queixo hostil, distinto,
 Furtiva a tiritar em suas peles,
 Espanta-me a actrizita que hoje pinto,
 Neste Dezembro enérgico, sucinto,
 E nestes sítios suburbanos, reles!

Como animais comuns, que uma picada esquente,
 Eles, bovinos, másculos, ossudos,
 Encaram-na, sanguínea, brutalmente:
 E ela vacila, hesita, impaciente
 Sobre as botinhas de tacões agudos.

Porém, desempenhando o seu papel na peça,
 Sem que inda o público a passagem abra,
 O demonico arrisca-se, atravessa
 Covas, entulhos, lamaçais, depressa,
 Com seus pezinhos rápidos, de cabra!

Cesário Verde
(1855-1886)

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