domingo, 31 de julho de 2011

Sidónio Muralha


CAPOEIRA


Sacudindo sùbitamente o silêncio e o sono, um galo
anunciou alegremente a madrugada.
E bom será declará-lo:
aquilo não foi um canto, foi um grito
vibrando como um dardo. Um grito
lúcido, largo, límpido como a madrugada...

Na impossibilidade de ser julgado o galo
o dono vai responder pelo delito.

Mais nada.

Sidónio Muralha
(1920-1982)
In "Companheira dos Homens"

Manuel Freire canta Sidónio Muralha "Pequenos deuses caseiros"

sábado, 30 de julho de 2011

Sidónio Muralha Cantado por Beto Capeletto.

Eugénio de Andrade


ADEUS


Como se houvesse uma tempestade
escurecendo os teus cabelos,
ou, se preferes, minha boca nos teus olhos
carregada de flor e dos teus dedos;

como se houvesse uma criança cega
aos tropeções dentro de ti,
eu falei em neve - e tu calavas
a voz onde contigo me perdi.

Como se a noite se viesse e te levasse,
eu era só fome o que sentia;
Digo-te adeus, como se não voltasse
ao país onde teu corpo principia.

Como se houvesse nuvens sobre nuvens
e sobre as nuvens mar perfeito,
ou, se preferes, a tua boca clara
singrando largamente no meu peito.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)
In "As Palavras Interditas"

Sidónio Muralha


CERTEZA


Não nos responde o céu cinzento e opaco
nem o sorriso de pedra e impenetrável dos nichos...

- só nós sabemos porque vivemos num buraco
encurralados como bichos.

Sidónio Muralha
(1920-1982)
In "Companheira dos Homens"
Edição de 1950.

Sidónio Muralha


COMPATRIOTA


Que todos os meus anseios de poeta
possam cair no teu regaço,
velha lutadora, velha analfabeta
que não sabes dos versos que te faço!

Vejo-te de joelhos,
de joelhos e de mãos postas,
de joelhos e de mãos postas num velho esfregão
lavando, lavando casas...
A tua cabeça branca é uma acusação
- passa um poeta - e a acusação tem asas.

Velha que conheceste algumas gerações
e devias ser tratada como os doentes e as crianças
- atira o teu esfregão contra os nossos corações
e grita nos meus versos agudos como lanças!

Sidónio Muralha
(1920-1982)
In"Companheira dos Homens"
Edição de 1950.

Sidónio Muralha


ORDEM DO DIA


Homens novos temperados pela guerra,
das fábricas enormes e cinzentas
- rasgai poemas na terra
com as vossas ferramentas!

Homens das oficinas e dos cais,
dos campos e da faina sobre o mar
- porque não ensinais
os poetas a cantar?

Algemados - não importa por que leis -
seja qual for a vossa raça e a vossa casta,
vinde dizer o que sabeis!
- Por agora é quanto basta.

Vinde das minas, dos fornos, das caldeiras,
vergados da descarga do carvão!
Vinde! Porque chegou enfim o dia
de apressar a tarefa inconcluída!

- E a poesia, esta poesia,
é um facho que vai de mão em mão
pelos caminhos da vida.

Sidónio Muralha
(1920-1982)
In "Companheira dos Homens"
(Tipografia Garcia & Carvalho em 1950)
(Uma capa bonita da autoria de Júlio Pomar)

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Receita electrónica.


Com a portaria nº 198/2011 os médicos vão começar a prescrever medicamentos (nos consultórios) por receita electrónica. É um grande avanço na prescrição de medicamentos...mas há coisas que se vão perder...

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Casimiro de Brito


AFIXEM CARTAZES


Brevemente minto
pela última vez
Afixem cartazes
como fazem os reis

Cartazes de nada
escorrendo silêncio
sobre nossas cabeças
viradas ao tempo

Brevemente minto
minto por lealdade
Abram vossas pupilas
inventem a verdade

Casimiro de Brito
In "Telegramas" (1959)

Rosalia de Castro


CANTAR DE EMIGRAÇÃO


Este parte, aquele parte
e todos, todos se vão.
Galiza, ficas sem homens
que possam cortar teu pão

Tens em troca orfãos e orfãs
e campos de solidão
e mães que não têm filhos
filhos que não têm pais.

Corações que tens e sofrem
longas horas mortais
viúvas de vivos-mortos
que ninguém consolará

Rosalia de Castro
(1837-1885)
Trad. de José Niza

domingo, 24 de julho de 2011

Joaquim Namorado



ARS

Os muros brancos da indiferença
desafiam os pintores
a pintar neles a esperança

amarelos sóis girando
roxos violetas azuis
gente animais árvores flores
como há e não há inventados
largas janelas abertas
para a vida e para o sonho

vermelhos entusiasmos
castanhos terra serenos
verdes e verdes terrenos
de horizontes rasgados
onde caibam os países
e os continentes e os mares ainda por descobrir
e o homem caiba inteiro
na verdadeira grandeza

em profundas perspectivas
tudo o que é grande e pequeno
dos outros o que a nós pertence
de nós o que a todos damos
a noite intensa povoada de sóis
que outros dias iluminam

a esperança neles pintada
a Paz o Pão o Amor.

E nas mansardas escuras
com os brancos muros em frente
da gelada indiferença
os artistas febris
esboçam em traços difusos
a própria morte do sonho.

Mas já na sombra da sombra
que sobre os brancos muros se estende
O coro das carpideiras
tece flores de retórica
para coroar-lhes as caveiras
e os conservadores misantropos
dos museus do que já foi
fazem o espólio das artes
com requintes de molduras.

Nos muros brancos da indiferença
gela o frio esquecimento…

Joaquim Namorado
(1914-1986)
(in Antologia de Poetas Alentejanos)

Adriano Correia de Oliveira canta António Ferreira Guedes "Erguem-se muros em volta"

Armindo Rodrigues


MALDIÇÃO


Maldito seja o que busca
matar o sonho dos homens.
Maldita seja a vergonha.
Maldito seja o pesar.
Maldito seja o silêncio
que nos cala antes da morte.
Maldito seja o que é falso,
ou induz em confusão.
Malditos sejam os bons
que o são só por piedosos.
Maldito seja o cruel
por ódio ou por piedade.
Maldito seja o que aceita
argumentos que não pesa.
Maldito seja o que força
alguém a acreditá-lo.
Maldito seja o orgulho
do que o alheio despreza.
Maldito seja o que finge
humildades que não tem.
Maldito seja o que faz
dos desejos maldição.
Maldito seja o desejo
de só nada desejar.
Maldito seja o que inveja
o pão de que não precisa.
Maldito seja o que encontra
na fome conformação.
Maldito seja o que é feio
por gosto de fealdade.
Maldita seja a beleza
que à vida seja traição.
Maldita seja a riqueza
que de fartura não serve.
Maldita seja a fartura
quando a todos não chegar.
Maldito seja o saber
arvorado em tirania.
Maldito seja o que ignora
e não dá por ignorar.
Maldito seja o que impõe
o que para si não quer.
Maldito seja o que jura
contra a sua convicção.
Maldito seja o que alcança
sem o esforço de colher.
Maldito seja o temor
de luz de mais nos cegar.

Armindo Rodrigues
(1903-1999)

António Luís Moita


AMOR

No gesto, nas rugas,
nos olhos de um homem,
na seca floresta,
na terra gretada,
na tímida angústia
do sol que nos resta,
nas aves que tombam
feridas na estrada,
no pó que esvoaça,
na abelha que zumbe,
no vento que estala
chicotes no mar,
na lava latente,
nos tristes amantes,
nos braços que imploram
morrer devagar,
na rua, num beco,
num quarto, num beijo,
no verso que range,
no último sonho,
no vão realejo
que geme no exílio
da noite sem luar...
- em tudo se exprime,
tocando a rebate,
ingénua, terrível,
urgente, precisa,
a doce palavra,
sonora palavra
da sobrevivência!

António Luís Moita
"In "Teoria do Girassol" (1956)

Vasco Miranda


INCÊNDIO


Deixai-me apertar, nas mãos, as mãos de todos os homens
E vibrar, na alma, a alma de todos os homens
E cantar, na boca, a boca de todos os homens.

Impossível ficar aqui, no silêncio, - voz sozinha e dispersa.
Impossível andar errante ao sabor duma fantasia inútil
Feita de sonhos estéreis e cometimentos inglórios.
Os meus lábios abrem-se para mais um desejo de sacrifício,
As minhas mãos estendem-se para mais um corpo chagado,
Os meus soluços traduzem-se em mais um cântico de esperança...

...E a língua salga porque anda cheia de mar
E o coração dá-se porque ama e sofre...

- Vida!: Sê toda minha!
Amanhã saberás que não foste a figueira brava tocada de esterilidade.

Vasco Miranda
(1922-1976)
In "Luz na Sombra"

Jaime Salazar Sampaio


FICOU DA INFÂNCIA


ficou da infância a febre
de correr parado
pelas estradas

podes chamar-lhe versos
são viagens

ficou na infância a fisga
de arremessar ao vento

podes chamar-lhe versos
são pedradas

Jaime Salazar Sampaio
(1925-2010)
In "Palavras Para um Livro de Versos (1956)"

Luís Cilía canta João Apolinário "Sei que me esperas"

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Fernando Lemos


AS NOVAS LEIS


Atrás de qualquer porta
está sempre o mar alto que me espreita
Ou então a capa em que o vento abate
a dúvida ou a suspeita

Linhas rectas seguem cidades
quebrando fazendo nós
quando um homem lança mão num estrado
de abelhas completamente sós

Criaram-se novas leis
novos modelos de calçado
Fotografias com cores
décors do patriarcado

Mas as facas de cortar fruta
que correm a praia de extremo a extremo
dançam em pontas sobre o pequeno
E as mães que já não sabem
fazer as suas contas
deitam-se ao mar pelo que vêem
e julgam-no sereno

Saem dos astros pés das ondas mãos
a taparem os rostos os medos
As fardas que andam nuas
sobram armas lugares amenos

O mundo não previa tanto
e esgotou-se a lotação
Vão pelos canos correndo pardais cegos
como convém à perseguição

Criaram-se novas leis
há pânico pelas nossas varandas
nascem entretanto árvores nuas
tantas
Mas os dentes ainda são de pedra
apesar da nova lei que os não respeita
Embora a máquina de fazer peças para novas peças
seja o mar alto que atrás da porta me espreita.

Fernando Lemos
In "Teclado Universal"

Luís Amaro


OBSESSÃO


Que forças obscuras detiveram
Os indecisos passos, na aurora
Duma vida sem culpa?

Que vozes ignotas, que segredos
Toldaram o olhar que reflectia
O fulgor da manhã?

Que secreta mão pousou no ombro,
Frágil, da perdida infância
E suspendeu o riso que floria
Nos lábios sem mentira?

Jamais o saberemos. Experientes
Dos humanos caminhos da tristeza,
Nunca mais nossos olhos conheceram
A luz que visionaram algum dia!

Luís Amaro (In «Artes e Letras» - Diário de Notícias, 1-05-1957)

Pedro da Silveira


«A ESSA TERRA»


A essa terra que não era a tua
deste o vigor dos teus braços,
deste o teu suor
e o teu engenho.

Por essa terra que ao era a tua
deste generosamente o teu sangue.
E deste-lhe, povoador de mundos,
os teus filhos.

Agora, fechados os portos à tua entrada,
já o mar não é caminho aberto de emigrantes,
o mar não é mais a estrada livre das barcas de clandestinos...

O mar...
(você o disse Jorge Barbosa)
é hoje a nossa prisão sem grades.

Irmão, deixá-lo...
Nas nossas ilhas erguemos o sonho que te negam.
O nosso mundo.

Pedro da Silveira
(1922-2003)
In "A Ilha e o Mundo"

quinta-feira, 21 de julho de 2011

João Apolinário


SALTA DO HORIZONTE...


Salta do horizonte
a curva que o limita

e um pássaro é a porta
da distância interdita

uma solidão gelada
imponderável hirta

abre as portas do nada
à distância infinita

e o pássaro explica
aos homens e às estrelas
a viagem decifrada
nas suas asas.

João Apolinário
(1924-1988)
In "Primavera de Estrelas"

Ana Hatherly


AQUELE QUE PROCUROU...

Aquele que procurou
E não encontrou,
É o homem desiludido.
Aquele que não procura
E tudo encontra
E nada pode fazer do que achou,
É mais que infeliz:
Sabe a verdade.

Ana Hatherly.

domingo, 17 de julho de 2011

Concha Buika "Nostalgia"

Avec le Temps por Catherine Lara

Mário de Sá Carneiro


CANÇÃO DE DECLÍNIO


Atapetemos a vida
Contra nós e contra o mundo.
- Desçamos panos de fundo
A cada hora vivida.

Desfiles, danças - embora
Mal sejam uma ilusão.
- Cenários de mutação
Pela minha vida fora!

Quero ser Eu plenamente:
Eu, o possesso do Pasmo.
- Todo o meu entusiasmo,
Ah! que seja o meu Oriente!

O grande doido, o varrido,
O perdulário do Instante -
O amante sem amante,
Ora amado ora traído...

Lançar as barcas ao Mar -
De névoa, em rumo de incerto...
- P'ra mim o longe é mais perto
Do que o presente lugar.

...E as minhas unhas polidas -
Ideia de olhos pintados. . .
Meus sentidos maquilhados :
A tintas desconhecidas...

Mistério duma incerteza
Que nunca se há-de fixar...
Sonhador em frente ao mar
Duma olvidada riqueza...

- Num programa de teatro
Suceda-se a minha vida:
Escada de Giro descida
Aos pinotes, quatro a quatro!...

(Paris,1915)

Mário de Sá Carneiro
(1890-1916)
In "A Poesia da Presença"
de Adolfo Casais Monteiro.

Cristovam Pavia


RIMANCINHO


Calmamente nos teus olhos
Me afoguei, a descansar...
Passou o tempo silvando,
Passaram frotas de nuvens,
Sem vestígios se encontrar...
Isto foi há muitos anos,
Desistiram de buscar...
Nas ondas quebrando, claras,
Nem as águas advinham
A eterna sombra e a paz
Das profundezas do meu mar...

Cristovam Pavia
(1933-1968)
in "Poesia"

sábado, 16 de julho de 2011

João de Deus


O DINHEIRO

O dinheiro é tão bonito,
Tão bonito, o maganão!
Tem tanta graça, o maldito,
Tem tanto chiste, o ladrão!
O falar, fala de um modo...
Todo ele, aquele todo...
E elas acham-no tão guapo!
Velhinha ou moça que veja,
Por mais esquiva que seja,
Tlim!
Papo.

E a cegueira da justiça
Como ele a tira num ai!
Sem lhe tocar com a pinça;
E só dizer-lhe: «Aí vai...»
Operação melindrosa,
Que não é lá qualquer coisa;
Catarata, tome conta!
Pois não faz mais do que isto,
Diz-me um juiz que o tem visto:
Tlim!
Pronta.

Nessas espécies de exames
Que a gente faz em rapaz,
São milagres aos enxames
O que aquele demo faz!
Sem saber nem patavina
De gramática latina,
Quer-se um rapaz dali fora?
Vai ele com tais falinhas,
Tais gaifonas, tais coisinhas...
Tlim!
Ora...

Aquela fisionomia
É lábia que o demo tem!
Mas numa secretaria
Aí é que é vê-lo bem!
Quando ele de grande gala,
Entra o ministro na sala,
Aproveita a ocasião:
«Conhece este amigo antigo?»
— Oh, meu tão antigo amigo!
(Tlim!)
Pois não!

João de Deus
(1830-1896)
In "Campo de Flores"

Fernando Pessoa


É FÁCIL TROCAR AS PALAVRAS.


É fácil trocar as palavras,
Difícil é interpretar os silêncios!
É fácil caminhar lado a lado,
Difícil é saber como se encontrar!
É fácil beijar o rosto,
Difícil é chegar ao coração!
É fácil apertar as mãos,
Difícil é reter o calor!
É fácil sentir o amor,
Difícil é conter sua torrente!

Como é por dentro outra pessoa?
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.

Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição
De qualquer semelhança no fundo.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

José Carlos Ary dos Santos


ESTIGMA


Filhos dum deus selvagem e secreto
E cobertos de lama, caminhamos
Por cidades,
Por nuvens
E desertos.
Ao vento semeamos o que os homens não querem.
Ao vento arremessamos as verdades que doem
E as palavras que ferem.
Da noite que nos gera, e nós amamos,
Só os astros trazemos.
A treva ficou onde
Todos guardamos a certeza oculta
Do que nós não dizemos,
Mas que somos.

José Carlos Ary dos Santos
(1936-1984)

Federico Garcia Lorca


SE AS MINHAS MÃOS PUDESSEM DESFOLHAR...

Eu pronuncio teu nome
nas noites escuras,
quando vêm os astros
beber na lua
e dormem nas ramagens
das frondes ocultas.
E eu me sinto oco
de paixão e de música.
Louco relógio que canta
mortas horas antigas.

Eu pronuncio teu nome,
nesta noite escura,
e teu nome me soa
mais distante que nunca.
Mais distante que todas as estrelas
e mais dolente que a mansa chuva.

Amar-te-ei como então
alguma vez? Que culpa
tem meu coração?
Se a névoa se esfuma,
que outra paixão me espera?
Será tranquila e pura?
Se meus dedos pudessem
desfolhar a lua!

Federico Garcia Lorca
(1898-1936)

terça-feira, 12 de julho de 2011

Sidónio Muralha


SONETO DA INFÂNCIA BREVE


Muito cedo deixei de ser criança
e só guardei, à guisa de brinquedo,
encharcada de lua essa lembrança
de não ser mais criança muito cedo.

É esse cheiro de terra e a brisa mansa
ondulante de verde e de arvoredo
e o folguedo doirado dessa trança
que um dia me contou o seu segredo.

O menino que eu fui ainda corre
no meu país distante. O dia morre,
as sombras vão descendo, o sono vence-o.

E ele dorme, de mim desencontrado,
o menino que eu fui dorme embalado
na surdez em surdina do silêncio

Sidónio Muralha
(1920-1982)

domingo, 10 de julho de 2011

Gabriel Celaya


AVISO


A cidade é de borracha lisa e negra
mas tem vielas com odor a estábulo,
armazéns de cereais, a madeira molhada,
a selaria, a chicória, a esparto.

Há chilrreios que mordem, ruídos inumanos,
há bruscas buzinadas que desincham
meu absurdo coração hipertrofiado.

Alugo-me por horas; rio e choro com todos;
mas escreveria um poema perfeito
se não fosse indecente fazê-lo nestes tempos.

Gabriel Celaya
(1911-1991)
In "Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea"
Trad. de José Bento.

José Gomes Ferreira


AQUELA NUVEM


Aquela nuvem
parece um cavalo…

Ah! Se eu pudesse montá-lo!

Aquela?
Mas já não é um cavalo,
É uma barca à vela.

Não faz mal.
Queria embarcar nela.

Aquela?
Mas já não é um navio,
é uma torre amarela
a vogar no frio
onde encerraram uma donzela.

Não faz mal.
Quero ter asas
para a espreitar da janela.

Vá, lancem-me no mar
donde voam as nuvens
para ir numa delas
tomar mil formas
com sabor a sal
- Labirinto de sombras e de cisnes
No céu de água-sol-vento-luz
concreto e irreal…

José Gomes Ferreira
(1900-1985)

João José Cochofel


BREVE


Breve
o botão que foste
e o pudor de sê-lo.

Breve
o laço vermelho
dado no cabelo.

Breve
a flor que abriu
e o sol mudou.

Breve
tanto sonho findo
que a vida pisou.

João José Cochofel
(1919-1982)
In "366 Poemas que Falam de Amor"

Alberto de Serpa


DIVERSÃO


Por entre o fumo dos cigarros,
nas sombras desta luz quebrada,
linda mulher de olhos bizarros,
vai nesses braços, vai, levada!...

Fecha os teus olhos, vamos! sonha
que já passou essa má vida.
deixa que a música te ponha
numa tristeza mais sentida.

Parece vir de tão distante
o ritmo dessas notas vagas!
Deixa que um sonho te levante
do mar revolto em que naufragas.

Alberto de Serpa
(1906-1992)
In "366 Poemas que falam de Amor"
(Uma antologia organizada por Vasco Graça Moura)

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Guerra Junqueiro (17/09/1850 - 07/07/1923)


PORTUGAL DE ONTEM DE HOJE E DE SEMPRE?


"Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta.


Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira a falsificação, violência ao roubo, donde provem que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis.


Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este,finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do País. [.] A justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas; Dois partidos [.] sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, [.] vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se malgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar."


Guerra Junqueiro, "Pátria", 1896.

Henry Wadsworth Longfellow


A SETA E A CANÇÃO


Atirei uma seta ao ar;
Caiu na terra, não sei onde.
Tão veloz ia, que não pôde
Seu voo seguir, o meu olhar.

Murmurei uma canção no ar;
Caiu na terra, não sei onde:
Que vista pode acompanhar
O voo de uma canção tão longe?

Tempos depois, inteira, a seta
Encontrei num carvalho antigo;
E essa minha canção, completa,
Guarda-a um coração amigo.

Henry Wadsworth Longfellow
(1807-1882)
In "Rosa do Mundo 2001 Poemas Para o Futuro"
Trad. de A. Herculano de Carvalho.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Luis Cernuda


CONTIGO


Minha terra?
Minha terra és tu.

Minha gente?
Minha gente és tu.

O desterro e a morte
para mim estão onde
não estejas tu.

E minha vida?
Diz, minha vida,
Que és, se não és tu?

Luis Cernuda
(1902-1963)
In "Antologia Poética"
Trad. de José Bento.

Juan Ramón Jiménez


ATIRA A PEDRA...


Atira a pedra de hoje,
esquece e dorme. Se é luz,
amanhã hás-de encontrá-la,
feita sol, ante a aurora.

Juan Ramón Jiménez
(1881-1958)
In "Antologia Poética"
Trad. de José Bento.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Juan Ramón Jiménez


POESIA


Veio, primeiro, pura,
vestida de inocência;
amei-a como um menino.

Depois foi-se vestindo
de não sei que roupagens;
e fui-a odiando, sem sabê-lo.

Chegou a ser rainha,
faustosa de tesouros...
Que fúria de fel e sem sentido!

...Porém, foi-se despindo.
E eu então sorria-lhe.

Ficou só com a túnica
da inocência antiga.
Confiei nela de novo.

E despiu a sua túnica,
e surgiu toda nua...
Oh paixão da minha vida, poesia
nua, minha para sempre!

Juan Ramón Jiménez
(1881-1958)
Prémio Nobel em 1956.
In "Antologia Poética"
Tra. de José Bento.

domingo, 3 de julho de 2011

João Cabral do Nascimento


CANTIGA


Deixa-te estar na minha vida
Como um navio sobre o mar.

Se o vento sopra e rasga as velas
E a noite é gélida e comprida
E a voz ecoa das procelas,
Deixa-te estar na minha vida.

Se erguem as ondas mãos de espuma
Aos céus, em cólera incontida,
E o ar se tolda e cresce a bruma,
Deixa-te estar na minha vida.

À praia, um dia, erma e esquecida,
Hei, com amor, de te levar.
Deixa-te estar na minha vida.
Como um navio sobre o mar.

João Cabral do Nascimento
(1897-1978)
In "366 poemas que falam de amor"
Uma antologia organizada por Vasco Graça Moura.

Jim Morrison morreu a 3 de Julho de 1971.

João Rui de Sousa


AS DISSONÂNCIAS


A minha vida é esta esperança acessória,
esta dor que embala e não promete,
é este estar contente como quem parece
descrer doutra ventura e não se cala.

É este não saber eternamente
assentar em cheio minhas seteiras
e estar eternamente calmo (ou estar escondido),
calando sempre as minhas três maneiras

A minha vida é este erguer de bruma
e-sempre que é preciso-recordar alguém,
já morto, à noite, à cabeceira,

até cair de novo, ao sono e ao sol-posto,
no tempo vão, inerme e obstruído
de sonhar de novo e de qualquer maneira.

João Rui de Sousa
In " Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa"

Casimiro de Brito


A VERTICAL ESPERANÇA


Creio na fraternidade
há irmãos para tudo

Não há nenhum homem da minha idade

Entre os homens mais velhos do que eu
e os homens mais novos do que eu
sou a vertical esperança
a tentar
uni-los


Casimiro de Brito

sábado, 2 de julho de 2011

Pedro Tamen


PALAVRAS MINHAS


Palavras que disseste e já não dizes,
palavras como um sol que me queimava,
olhos loucos de um vento que soprava
em olhos que eram meus, e mais felizes.

Palavras que disseste e que diziam
segredos que eram lentas madrugadas,
promessas imperfeitas, murmuradas
enquanto os nossos beijos permitiam.

Palavras que dizias, sem sentido,
sem as quereres, mas só porque eram elas
que traziam a calma das estrelas
à noite que assomava ao meu ouvido...

Palavras que não dizes, nem são tuas,
que morreram, que em ti já não existem
- que são minhas, só minhas, pois persistem
na memória que arrasto pelas ruas

Pedro Tamen

Luís Veiga Leitão


ACOMPANHAMENTO LÍRICO


Desceu a nuvem. E de vale em vale
a manhã ficou pálida suspensa
Árvores lama fronte de quem pensa
vestem de branco um branco glacial
Como flecha de lume no vitral
também minha alma que brilhou intensa
novamente afogou sua presença
no fundo de uma túnica irreal
E levo-a
pelo mar fora pelo mar da névoa
sob o silêncio húmido profundo
em cujas mãos de lágrimas deponho
o mutilado corpo do teu sonho
corpo sem asas de voar no mundo

Luís Veiga Leitão
(1912-1987)
In "Sonhar a Terra Livre e Insubmissa..."

Manuel da Fonseca


TU E EU MEU AMOR

Tu e eu meu amor
meu amor eu e tu
que o amor meu amor
é o nu contra o nu.

Nua a mão que segura
outra mão que lhe é dada
nua a suave ternura
na face apaixonada
nua a estrela mais pura
nos olhos da amada
nua a ânsia insegura
de uma boca beijada.

Tu e eu meu amor
meu amor eu e tu
que o amor meu amor
é o nu contra o nu.

Nu o riso e o prazer
como é nua a sentida
lágrima de não ver
na face dolorida
nu o corpo do ser
na hora prometida
meu amor que ao nascer
nus viemos à vida.

Tu e eu meu amor
meu amor eu e tu
que o amor meu amor
é o nu contra o nu.

Nua nua a verdade
tão forte no criar
adulta humanidade
nu o querer e o lutar
dia a dia pelo que há-de
os homens libertar
amor que a eternidade
é ser livre e amar.

Tu e eu meu amor
meu amor eu e tu
que o amor meu amor
é o nu contra o nu.

Manuel da Fonseca
(1911-1993)
In "Poemas para Adriano"
(1972)

José Régio


CÂNTICO NEGRO


"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!

José Régio
(1901-1969)

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Dolores Duran (1930-1959)" A Noite do Meu Bem"

Manuela Moura Guedes


Manuela Moura Guedes já não vai para a SIC...O tio Balsemão não a quer por lá. Sem Sócrates no governo...não precisa dela!

Ruy Cinatti


VIGÍLIA



Paralelamente sigo dois caminhos
Abstracto na visão de um céu profundo.
Nem um nem outro me serve, nem aquele
Destino que se insinua
Com voz semelhante à minha. O melhor do mundo
Está por descobrir. Não segue a lua
Nem o perfil da proa. Vai direito
Ao vago, incerto, misterioso
Bater das velas sinalado e oculto.

Quero-me mais dentro de mim, mais desumano
Em comunhão suprema, surto e alado
Nas aragens nocturnas que desdobram as vagas,
Chamam dorsos de peixes à tona de água
E precipitam asas na esteira da luz.
Da vida nada se leva senão a melhoria
De um paraíso sonhado e procurado
Com ternura, coragem e espírito sereno.

Doçura luminosa de um olhar. Ameno
Brincar de almas verticais em pleno
Sol de alvorada que descerra as pálpebras.

Ruy Cinatti
(1915-1986)

Ruy Cinatti


ALI, ONDE AS ROSAS...


Ali, onde as rosas se doavam
A quem, pousando a mão, se debruçasse,
Ficou uma saudade sem história
Nem dor... Só de alegria
O sentimento pleno a quem ousasse
Colhê-las na memória.

Ninguém perceberá morta a distância,
Nem o aroma breve que evolavam.

Só a saudade de uma luz perfeita,
Descendo na minha alma a minha vida,
Descobre, junto a uma pétala desfeita,
O teu olhar puríssimo.

Ruy Cinatti
(1915-1986)
In "Anoitecendo, a Vida Recomeça"

" Fui à beira do mar " - José Afonso.


" As Time Goes By " - Billie Holiday (1915-1959)